José Padilha, diretor dos premiados "Tropa de elite" e "Ônibus
174", está terminando de rodar
"Garapa", um documentário que
mostra o dia-a-dia de três famílias que
passam fome no Ceará. Em entrevista
à "Folha de S.Paulo", ele disse: "É eticamente inadmissível que alguém, no
grupo dos beneficiados históricos
deste país, olhe para os miseráveis
que não têm o que comer e diga que os
R$ 58 que o governo dá a eles são uma
política errada." Acrescentou que o
valor do benefício era insuficiente para matar a fome daquelas pessoas.
Ele está absolutamente certo ao fazer as duas afirmações.
Mas absolutamente errado ao acreditar que o Bolsa Família, tal como está posto, seja a solução do problema.
A enorme abrangência do programa
pode ser contraproducente.
Citando uma pesquisa sobre segurança alimentar feita pelo Ibase, Padilha disse que 11,5 milhões vivem a
mesma situação das famílias de seu filme. Esse tipo de pesquisa, porém, não
é capaz de "comprovar" se a fome existe de fato na população pesquisada,
porque tudo se baseia em autodeclaração. Há uma ou duas perguntas objetivas, mas, na maior parte, elas medem
mais expectativas, temores, frustrações. Um exemplo: "Nos últimos três
meses, os moradores deste domicílio
tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem
comprar ou receber mais comida?"
Com perguntas assim, a pesquisa concluiu que 21% dos beneficiários (11,5
milhões) têm insegurança alimentar
grave (fome), 34%, moderada (restrição na quantidade de alimentos) e 28%,
leve (não há falta de alimentos, mas o
temor de que venham a faltar). Feita
apenas entre beneficiários do Bolsa Família, a pesquisa pode estar enviesada:
conhecendo os objetivos do programa,
talvez tenham respondido de modo a
continuar a merecer o benefício.
A pesquisa brasileira é inspirada na
americana, aplicada lá desde 1995. Os
EUA gastaram no ano passado US$
53,3 bi com programas de distribuição
de comida a quem está abaixo da linha
de pobreza. Em apenas um deles, o Food Stamps, são 26,5 milhões de beneficiários, que recebem, em média, US$
214 por família. Mesmo assim, em
2006, os números da pesquisa foram
desconcertantes: lá existem 35,5 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, sendo que 11,1 milhões em insegurança alimentar grave.
Já disse antes: se nem na nação mais
próspera do planeta, com os seus programas assistenciais multimilionários,
a insegurança alimentar foi resolvida,
o problema não é do país, mas do conceito de insegurança alimentar.
O único método viável de comprovar
a existência de fome em grandes grupos
populacionais é pesando e medindo as
pessoas. Porque, se a ingestão de calorias for menor do que a necessária, o indivíduo emagrecerá: a relação peso/altura mostrará esse emagrecimento, e,
se ele for superior a certos limites, a fome estará comprovada. Para adultos, a
OMS considera aceitável um índice de
até 5% de emagrecidos, porque, estatisticamente, esta é a proporção de indivíduos magros por natureza em qualquer grupo. A Pesquisa de Orçamentos
Familiares (POF), do IBGE, realizada entre 2002 e 2003 (antes, portanto, do Bolsa Família) mediu e pesou os brasileiros
e encontrou um índice de magros de
4%, dentro da normalidade (na Índia, o
índice foi de 49%). Em apenas alguns
poucos estratos a proporção excedeu
os 5%: sempre mulheres, de uma maneira geral da zona rural e das faixas de
renda mais baixas (o pico foi de 8,5%).
Os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), realizada em
2006 e divulgada na quinta-feira, mostram, porém, que essa situação já foi superada (veja detalhes numa versão ampliada do artigo em oglobo.com.br/opinião).
Mesmo entre as crianças, a notícia é
excelente. A desnutrição aguda é também medida pela relação peso/altura,
mas, para elas, o índice aceitável é de até
3%, o que corresponderia a crianças geneticamente magras. O índice encontrado pela PNDS foi de apenas 1,6%, ou seja:
é virtualmente nula a fome em crianças
no Brasil. A desnutrição crônica é medida pela relação altura/idade, que, segundo a pesquisa, "expressa o crescimento
linear da criança e, nesta medida, sintetiza a história do seu estado nutricional".
Em outras palavras, é uma relação que
traz mais as marcas do passado. O índice aceitável é de até 3%, o que corresponderia à proporção de crianças geneticamente pequenas. No Brasil, o índice
despencou de 13,4%, em 1996, para 6,8%
em 2006, menos da metade do índice do
México (15,5%) e menor do que o da Argentina (8,2%). Ainda há fome no Brasil?
Sim, o que é uma tragédia, mas uma tragédia na casa das centenas de milhares,
nunca na casa dos milhões.
O filme de Padilha chama-se "Garapa" porque este é o nome da mistura
de água e açúcar que as famílias como
a que ele retratou dão a seus filhos
quando não há alimentos. Um pesadelo. Mas que não tem as dimensões que
ele acredita. A POF não detectou em
nenhum estrato da população (nem
mesmo nos de baixíssima renda) dietas à base de garapa.
Por que a abrangência do Bolsa Família pode estar sendo contraproducente? Porque o programa distribui
um dinheiro pequeno a 46 milhões de
pessoas, na suposição de que todas
passam fome. Se o programa fosse
mais bem dimensionado, o dinheiro
dado aos que, de fato, não têm comida
poderia ser substancialmente maior a
um custo total substancialmente menor. Em vez de R$ 10,8 bi, o Bolsa Família poderia gastar, sei lá, 20% disso,
dando muito mais a quem precisa e investindo o restante em educação, único instrumento que tira de fato o pobre da pobreza.
Se, em seu novo filme, Padilha usar
três famílias que passam fome como
exemplo de 11 milhões, terá sido induzido a erro pela leitura equivocada de
uma pesquisa. Se não fizer as ressalvas,
o filme não será a sua volta ao documentário, mas a sua permanência na ficção.