Eu acredito em eleições. E acredito que o povo sempre tem a
capacidade de julgar o que
considera bom para si. Isso
não quer dizer que o povo acerte sempre: não são poucas as vezes em que a
decisão mostra-se errada no futuro.
Não importa, no momento em que comparece às urnas, certo ou errado, o povo é responsável por suas escolhas.
Por que essa conversa? Porque isso
não me sai da mente quando vejo, chocado, os bombardeios em Gaza. Em
2006, houve eleições para escolha do
primeiro-ministro palestino. Era um contexto em que os EUA clamavam pela democratização do mundo árabe. Quando
o Hamas saiu-se vitorioso, muita gente,
diante dos lamentos dos americanos,
riu, dizendo algo assim: "Ora, não queriam democracia? Agora o povo vota,
escolhe o Hamas e os EUA lamentam?
Então democracia só vale quando ganham os aliados?" Na época, escrevi que
a simples presença do Hamas nas eleições mostrava que aquilo não era uma
democracia: porque democracia não é o
regime em que todas as tendências disputam o voto; democraciaéoregime
em que todas as tendências que aceitam
a democracia disputam o voto. Como o
Hamas prega uma teocracia, um sistema
político que o aceita como legítimo aspirante ao poder não pode ser chamado
de democracia. Seja como for, tendo sido democráticas ou não, aquelas eleições expressaram a vontade do povo:
observadores internacionais atestaram
que o pleito transcorreu sem fraudes.
E o que pregava o Hamas na campanha de 2006? Antes, para entender o linguajar, é importante lembrar que o Hamas não aceita a existência do Estado
de Israel, chamado de "Entidade Sionista". Assim, quando se refere à "Palestina", o Hamas engloba tudo, inclusive Israel. Destaco aqui três pontos do programa eleitoral (na disputa, o grupo
deu-se o nome de "Mudança e Reforma"): "A Palestina é uma terra árabe e
muçulmana"; "O povo palestino ainda
está em processo de libertação nacional e tem o direito de usar todos os
meios para alcançar esse objetivo, inclusive a luta armada"; "Entre outras
coisas, nosso programa defende a 'Resistência' e o reforço de seu papel para
resistir à Ocupação e alcançar a liberação. A 'Mudança e Reforma' vai também construir um cidadão palestino orgulhoso de sua religião, terra, liberdade
e dignidade; e que, por elas, esteja
pronto para o sacrifício."
Deu para entender? O Hamas propôs
um programa segundo o qual não há lugar para judeus na "Palestina", o uso da
luta armada deve ser reforçado para se
livrar deles, e os cidadãos comuns devem estar preparados para se sacrificar
(morrer) pela religião, pela terra, pela
liberdade e pela dignidade.
Havia alternativa? Sim, apesar da
ambiguidade eterna, o Fatah do presidente Mahmoud Abbas (e, antes, de
Yasser Arafat), na mesma eleição, pregava a saída de Israel dos territórios
ocupados em 1967, a criação de um
Estado Palestino com sua capital em
Jerusalém e uma solução para os refugiados de 1948 com base em resoluções da ONU, uma agenda que só
parece moderada porque é comparada à do Hamas. Embora estimulasse e
declarasse legítima a resistência à
ocupação, a novos assentamentos judaicos e à construção do muro de proteção que Israel ergue entre a Cisjordânia e seu território, o Fatah declarava expressamente: "Quando o imortal presidente Arafat anunciou em
1988 a decisão do Conselho Nacional
Palestino, reunido naquele ano, de
adotar a 'solução histórica', que se
baseia no estabelecimento de um Estado independente Palestino lado a lado com Israel, ele estava de fato declarando que o povo palestino e suas
lideranças tinham adotado a paz como uma opção estratégica."
E qual foi a decisão dos palestinos?
Num sistema eleitoral que adota o voto distrital misto, o Hamas ganhou
tanto no voto proporcional quanto
nos distritos, abocanhando 74 dos
132 assentos do Parlamento. Ou seja,
diante do desgaste de 40 anos do Fatah, e das denúncias de corrupção
que pairavam sobre o movimento, os
palestinos deixaram a paz de lado e
optaram pela promessa de pureza divina e dos foguetes do Hamas. Meses
depois, uma luta interna feroz entre
os dois grupos teve lugar e resultou
numa divisão territorial: o Fatah ficou
com a Cisjordânia, onde a situação é
de calma, e o Hamas ficou com Gaza,
de onde continuou pregando o programa aprovado pelos eleitores: enfrentamento armado, mesmo tendo
consciência do que isso acarretaria.
Diante disso, dá para dizer que os palestinos de Gaza são inocentes vítimas
do jugo do Hamas e de uma reação desproporcional dos israelenses?
Olha, eu deploro a guerra, lamento
profundamente a morte de tanta gente, especialmente de crianças, vítimas
de uma guerra de adultos. Vejo as
bombas, e fico prostrado, temendo
que o bom senso nunca chegue. Mas
isso não me impede de ver que a guerra, com suas consequências, foi uma
escolha consciente também dos palestinos de Gaza. Retratá-los como
despossuídos de todo poder de influir
em seus destinos não é mais uma verdade desde 2006.
Parecerá sempre simplificação
qualquer coisa que se diga num espaço tão curto, em que é preciso deixar
de lado as raízes desse conflito e a trama tão complicada que distribuiu culpa e vítimas por todos os lados. Mas
não consigo terminar este artigo sem
dizer: para que haja paz, os dois lados
têm de ceder em questões tidas como
inegociáveis, o apelo às armas tem de
ser abandonado, o Estado Palestino
deve ser criado ao lado de Israel, cujo
direito a existir não deve ser questionado. Se isso acontecer, muitos árabes e israelenses daquela região não
se amarão, terão antipatias mútuas,
mas viverão lado a lado.
Utopia?
PS: Peço desculpas por ter dito, em
meu último artigo, que os "professores não ensinam" quando quis dizer
que as escolas não ensinam.