Quero deixar claro logo de saída que este é
um artigo sobre ética jornalística. Portanto, apesar de tratar dos grampos do BNDES, não discutiremos aqui, no mérito, se
foi legal e legítima a atuação do Governo
na formação dos grupos que disputariam as teles.
Um primeiro ponto tem distorcido toda a questão
— a discussão sobre se é correta a publicação de
informações secretas obtidas de maneira ilegal. Os
que defendem esse ponto de vista citam sempre o
caso de Daniel Ellsberg. Ex-funcionário do Governo
americano, ele se apossou ilegalmente de estudos
secretos do Departamento de Defesa apontando erros da diplomacia dos EUA na guerra do Vietnam e
os repassou ao "New York Times", que os publicou
em capítulos. O Governo americano tentou evitar a
sua divulgação, mas a Suprema Corte deu ganho de
causa ao jornal. Por que o caso, lembrado agora como jurisprudência, distorce a discussão? Porque o
que agora se divulgou não era nem documento, nem
secreto: eram fitas, gravadas ilegalmente, com fins
criminosos. Entre uma e outra coisa há muitas diferenças, mas uma é fundamental. Dos documentos,
sabia o "New York Times" que eram oficiais e, o mais
importante, reconhecidos como verdadeiros pelo
G o v e rn o .
Algo totalmente diverso ocorre com as fitas. Para
que o meu raciocínio fique claro, proponho aos leitores que se coloquem na posição de um jornal nos
momentos que antecedem a publicação das fitas e
que tentem ignorar tudo o que se passou depois, no
caso concreto da ''Folha de S. Paulo'': antes de publicar as fitas, se não houver trabalho de investiga-
ção prévio, não se procurando sequer ouvir o "outro
lado", ninguém, absolutamente ninguém poderá ter
certeza do que virá a ocorrer nos dias subseqüentes
(reação do Governo, revelação de fatos novos, novas fitas em poder de terceiros). Pois bem: a ''Folha''
recebeu as fitas ou diretamente do criminoso ou de
um seu intermediário, não fez investigação paralela
nem ouviu o "outro lado". Não podia ter, portanto, a
menor idéia sobre se elas eram o resultado de todo
o grampo, se eram os melhores momentos na opinião do criminoso ou se havia outras fitas em que a
posição do Governo se revelasse inquestionavelmente positiva. E o que fez a ''Folha''? Publicou-as e
delas tirou conclusões peremptórias: "FHC tomou
partido de um dos grupos no leilão da Telebrás". Foi
um salto no escuro.
O que a estimulou a correr o risco? Principalmente, o conteúdo de uma das fitas, aquela em que, após
ouvir do ex-presidente do Banco Central André Lara
Resende o pedido para usar o seu nome para pressionar a Previ a apoiar o Opportunity, o presidente
Fernando Henrique afirma: ''Não tenha dúvida''. Por
que o risco? Porque, naqueles momentos que antecederam a publicação, nada garantia que uma outra
fita ou um outro trecho, desconhecidos da ''Folha'',
desmentissem, atenuassem, explicassem ou anulassem o conteúdo da primeira. Imaginem que, logo
após dizer ''não tenha dúvida'', FH tivesse imediatamente voltado a falar com Lara Resende e afirmado:
— André, pensei bem e não tenho dúvida nenhuma mesmo: não me mete nisso, não concordo com a
interferência do BNDES na formação dos consórcios, acho um erro, pare com essa estratégia.
A partir disso, dessa hipótese que sabemos somente agora que não se concretizou, um mar de possibilidades se abriria. Não vale dizer que o segundo
telefonema de FH não teria possibilidade de ter existido porque as outras fitas em poder da ''Folha''
mostram que o BNDES seguiu na estratégia de interferência. As fitas levantariam apenas, além desta,
outras entre várias hipóteses: FH poderia ter sido
traído por Lara Resende e Mendonça
de Barros; Lara Resende, em outro hipotético e desconhecido telefonema,
poderia ter feito FH voltar novamente
atrás; Mendonça de Barros, num
acesso de megalomania, poderia ter
mandado Lara Resende ignorar as palavras do presidente etc. Como não tinha certeza sobre se as fitas eram as
únicas, como não ouviu o outro lado,
a ''Folha'', nos momentos que antecederam a publicação do material, não
podia ter certeza de nada. Disse a
própria ''Folha'': ''As 46 fitas de 90 minutos resultam em 4.140 minutos de
gravação, ou 69 horas. Há muitos trechos em silêncio ou em branco (cerca de 30% das fitas, pelo menos)''. Trechos em silêncio ou em branco, apagados
pelo criminoso, provavelmente. Correu a ''Folha'',
portanto, um risco enorme.
É fato, o conjunto de fitas que a ''Folha'' publicou
leva quem o lê a ter uma visão negativa do Governo.
Mas quem reuniu as fitas, quem deu a elas a forma
de um conjunto? Um criminoso, que as obteve ilegalmente, com fins que podem ser múltiplos: prejudicar o Governo, obter ganhos comerciais ou, até
mesmo, revelar a verdade, mesmo que ilegalmente.
Era lícito supor, dadas a origem das gravações e a
existência até mesmo dos tais trechos em branco,
que talvez um outro conjunto de fitas ou um outro
conjunto de trechos pudessem traçar um outro perfil do Governo, mais favorável, mais positivo, talvez
até absolutamente positivo.
Não estou dizendo que as fitas eram falsas; estou
dizendo que podiam (e podem) não ser as únicas.
Portanto, seria legítimo e até mesmo uma obrigação
imaginar que, pelo menos por hipótese, um outro lote de gravações, que o criminoso tivesse omitido do
jornal, pudesse mostrar um diálogo do presidente
com Mendonça de Barros ou com André Lara Resende em que não restassem dúvidas sobre os propó-
sitos honestos do Governo, visando ao bem da na-
ção, um conjunto de fitas em que os três principais
citados aparecessem como paladinos da moralidade e da honestidade. Antes da publicação, e porque
nem investigou a denúncia (apenas reproduziu fitas) nem ouviu o "outro lado", o jornal não poderia
ter certeza absoluta de que este outro lote hipoté-
tico de fitas não existia.
Mas a "Folha" fez ainda mais: como honestamente
declarou, as fitas lhe chegaram às mãos sem ordem
cronológica. O que fez o jornal? Publicou-as na ordem cronológica que lhe pareceu mais razoável.
Ocorre que, para os crentes, o fluir do tempo pertence unicamente a Deus, Único a saber o que virá e
a poder dispor do presente e do passado; os ateus
ou agnósticos, apegando-se à Física,
também sabem que o tempo é um
fluir constante, sujeito a muitas leis,
mas imune às leis do homem.
A questão pode parecer menor,
mas não é. Tomemos um exemplo: em
dado momento, a ''Folha'' ridiculariza
Lara Resende porque este, num telefonema, teria ''exagerado'' muito o
apoio que teria recebido de FH, num
telefonema anterior, aquele do ''não
tenha dúvida''. Com que certeza fez a
Folha isso? Quem lhe garantia que entre um telefonema e outro não tivesse
havido um terceiro, com o presidente
a se comportar exatamente como o descrito por Lara Resende? Nada digno lhe garantia isso, apenas a
cronologia que decidiu construir e, talvez, a palavra
do criminoso que pode ter lhe assegurado que aquelas eram todas as fitas. E, no entanto, a "Folha" ridicularizou sem piedade Lara Resende, mostrandoo como um ''contador de vantagens'', um bobo, um
f a n f a rr ã o .
O que quero mostrar é que não se trata de dizer
que as fitas mentem ou falam a verdade. Em debate
com a teoria marxista, uma epistemologia weberiana diria que a realidade, o real, é sim uma totalidade,
um todo abrangente, como querem os marxistas.
Mas, diferentemente destes, os weberianos diriam
que aquela totalidade é inapreensível enquanto tal,
que não pode ser conhecida como um todo — é preciso recortá-la para conhecê-la, e os recortes podem
ser múltiplos, e todos verdadeiros. Quatro testemunhas de um atropelamento, por exemplo, cada uma
com um ângulo único de visão: todas contam uma
história diferente e ninguém estava mentindo — são
recortes de um todo que não pode ser apreendido
em sua totalidade. Pois bem, eis o que me ocorre: se
o real é construído, o discurso, por natureza fragmentado, é ainda mais altamente passível de toda
sorte de interpretações. Não são as fitas que são
uma montagem, é a montagem das fitas que é obra
de um autor, no caso, o autor de um grampo, um fora-da-lei, que grampeou com algum propósito e deu
publicidade ao grampo também com algum propó-
sito (se a polícia resolver agir, talvez saibamos
qual). O que digo é que nos momentos que antecederam a publicação das fitas, um jornal tinha por
obrigação pesar tudo isso. Ponderar que aquelas
poderiam não ser as únicas fitas; que aqueles poderiam não ser os únicos trechos, que a seleção das
fitas poderia ser uma pequena parte do real, a parte
que mais interessava ao seu autor. E, ao que parece,
isso não foi feito: ao acolher a coleção da fitas do
grampo, apenas contando-lhes os minutos e trechos
em branco, mas sem ter a certeza de que aquelas
eram as únicas, ao dar-lhes uma cronologia, ao não
ouvir a outra parte, a ''Folha'' construiu um real ou
deu publicidade a uma porção de real recortada por
um criminoso. E, após tudo isso, proferiu uma sentença: ''FHC favoreceu um consórcio''.
A ''Folha'', sem dúvida um jornal sério, correto, dirá — e já disse — que agiu assim por ter formado a
convicção de que as fitas eram prova de má conduta
do Governo. A convicção, porém, até onde se pode
chegar pela leitura do jornal, não foi lastreada por
investigação própria, mas pela crença de que um
conjunto de fitas (ou se preferirmos, um recorte do
real), elaborado por um criminoso, era um todo e
não uma parte.
Ao decidir publicar as fitas — e esta decisão é ao
meu ver a correta — um jornal deveria, de uma forma claríssima, fazer as ressalvas que aqui aponto,
relativizar o conteúdo porque vindo de um interessado fora-da-lei, investigar paralelamente para tentar descobrir se havia outras fitas e, o mais importante, o mais sagrado, ouvir o outro lado. E, em nenhuma hipótese, julgar, decretando uma verdade
que até aqui está ainda fora do alcance.
Não é fácil, ainda mais quando se considera que
nós jornalistas somos treinados para receber informações, entendê-las, processá-las e entregá-las ao
leitor no menor prazo. A publicação das fitas pela
''Folha'', no entanto, com todas as indagações que
suscita, prestou ao menos um serviço: ao jornalismo, por nos fazer pensar que nada é simples, nem
mesmo a transcrição de uma conversa telefônica
sem o menor sinal de montagem