Essa é a história de um
outro mundo que vive à
espera de um outro
mundo. E nenhum desses dois mundos é o nosso. Por
isso, para prosseguir na leitura,
é preciso que o leitor se dispa de
suas noções de possível e impossível. Se eu fosse fazer a genealogia do terror muçulmano, o
leitor se perderia num emaranhado de nomes de difícil pronúncia. Teria de voltar aos precursores dos homens-bomba, os
adeptos da seita dos assassinos,
no século XI, que inauguraram
os ataques suicidas. Mas não será necessário recuar tanto. Porque a sustentação teórica do terror islâmico contemporâneo foi
elaborada no século XX. Dois
nomes se destacam: Hassan AlBanna e Sayyid Qutb. Conhecê-
los, saber o que pensam e o que
pregam, é fundamental para entender a al-Qaeda e Bin Laden. É
este o propósito da série de três
artigos que tem início hoje. Se
eu obtiver êxito, o leitor nunca
mais achará que a possibilidade
de um ataque terrorista usando
armas atômicas é apenas uma
paranóia. E, talvez, passe a admitir que, contra essa gente,
nossa forma ideal de combate,
nós que não gostamos de guerras, não tem serventia. Porque o
lema que eles usam desde 1928
— "preparem-se para a Jihad e
sejam amantes da morte" — não
é uma frase vazia.
O primeiro passo é conhecer
o mundo em que eles vivem, um
mundo muito pequeno, apenas
a Arábia Saudita (e outros minúsculos países do Golfo Pérsico) e micro-sociedades nas cavernas do Afeganistão, onde Bin
Laden e seus adeptos se escondem. Nele, só há uma crença
que tudo rege: Deus é Único e,
por isso, ninguém mais pode
ser cultuado, nem o profeta
Maomé, nem santos. As orações
devem ser feitas somente tendo
Deus em mente e, portanto,
apelar pela interseção de algum
intermediário é pecado gravíssimo (é proibido comemorar datas festivas, mesmo que seja o
aniversário de Maomé). Deve-se
viver como eles acreditam que
o Alcorão prega, observando-se
estritamente a Sharia (o código
de leis muçulmano), e os costumes devem ser apenas aqueles
mencionados nas Hadith (a coletânea de ditos e feitos de Maomé e seus companheiros). A
música, a dança, o álcool e o fumo estão banidos e, às mulheres, é imposta uma condição de
segunda classe. Elas não podem
dirigir e só podem viajar na
companhia do marido ou de algum parente masculino de primeiro grau. Os homens são
obrigados a fazer as cinco ora-
ções, e, às sextas, devem comparecer às mesquitas, sob pena
de para lá serem levados sob
vara. E as punições físicas estão
em pleno vigor: adúlteros têm
de ser apedrejados, ladrões devem ter o braço amputado, e a
pena de morte deve ser executada em lugares públicos. Se
obrigado a viver no Ocidente ou
em países muçulmanos mais liberais (a maioria), o fanático leva esse mundo em sua cabeça
para onde for. E reza todos os
dias para não se contaminar
com a impureza que o cerca.
O mundo que eles querem é
parecido com aquele descrito
acima, mas com algumas cren-
ças a mais e algumas liberdades
a menos. Se, para nós, a liberdade é o direito mais sagrado, para
eles a submissão a Deus é o dever mais absoluto. Como Deus é
o criador de todas as coisas, tudo a Ele pertence e somente Ele
pode ser o soberano de todos os
homens. Só ele pode ser adorado, só ele deve ser obedecido. É
à primeira vista uma crença que
muitas religiões compartilham,
mas, aqui, ela ganha dimensões
totalizantes. Como Deus já revelou as suas leis e já anunciou que
seu último profeta foi Maomé,
não abrindo assim possibilidade
para um novo período de revelações, nenhuma lei feita pelo
homem pode ser respeitada, sob
pena de incorrer no pecado da
Shirk (adorar outro deus ou associar Deus a outro deus, porque respeitar outra lei que não a
de Deus é o mesmo que reconhecer que há outro soberano).
Um muçulmano não tem nenhuma nacionalidade, senão a sua
crença. Votar, portanto, é também um ato de Shirk, porque
não é possível escolher um soberano — este é Deus. A crença
de todo democrata — todo poder emana do povo — é Shirk,
porque todo poder emana apenas de Deus. O mundo hoje se
encontra no estado de Jahiliyyah, a completa ignorância
que reinava antes da revelação
do Alcorão. Depois dos primeiros anos após Maomé, inova-
ções de todo tipo teriam desvirtuado o Islamismo de tal forma
que a Jahiliyyah tomou conta de
todos novamente. Mesmo os
muçulmanos que se acreditam
muçulmanos são Jahilis, porque
não seguem a religião com pureza. A luta é, portanto, fazer o Islamismo vencer em todo o mundo, porque a mensagem do Alcorão é universal. É obrigação de
todo muçulmano se engajar nessa luta, em escala
mundial, até que
a lei de Deus esteja implantada em
todo o planeta. O
mundo que eles
querem é esse:
todo ele islâmico,
sem exceção. É
um mandamento
de Deus.
Chamar estes
fanáticos de fundamentalistas é
uma imprecisão, porque dá a
entender que eles advogam a
volta da religião aos seus fundamentos, com base numa leitura
literal do Alcorão. Eu mesmo já
disse mais de uma vez que a leitura que eles fazem do Alcorão
é literal, mas usei a definição,
consagrada pela mídia, apenas
para me desviar de uma discussão mais aprofundada. Porque
o termo "fundamentalismo"
chegou ao Islamismo por empréstimo. Os estudiosos e jornalistas aplicaram ao Islamismo
o mesmo rótulo que já havia sido dado aos movimentos fundamentalistas cristãos do início
do século passado: protestantes ultraconservadores propunham uma releitura literal da
Bíblia a que todos os cristãos
deveriam se submeter. Não é o
caso dos fanáticos do Islã. Embora gostem de que pensem
que eles têm uma leitura literal
do Alcorão, o que os fanáticos
na verdade fazem é algo bem diverso: uma "interpretação" radical do que está no livro sagrado dos muçulmanos. O Alcorão, com uma linguagem ultrametafórica, presta-se bem mais
a interpretações do que a leituras literais. Da mesma forma, as
Hadith (os ditos e os feitos do
profeta) são tantas que se costuma dizer que, para cada
exemplo mandando fazer tal
coisa, é possível achar outro
mandando fazer o seu contrá-
rio. O que os fanáticos fazem é
escolher, entre as Hadith, aquelas que mais se prestam à sua
interpretação e, depois, dizer
que elas são as únicas. Para
vencê-los, é preciso saber como
surgiram, como se multiplicaram, quem são os seus mentores. É uma viagem necessária.
O início de tudo é o ano de
1928, com a criação da Irmandade Muçulmana. Quando Hassan
al-Banna a criou,
aos 22 anos, ele já
não era mais
aquele filho de
um relojoeiro pobre do norte do
Egito, mas um jovem e respeitado
professor, formado pela tradicional Universidade
de Al-Azhar, a
mais prestigiada do país. Al-Banna, porém, já tinha sido feito refém de uma corrente de pensamento dentro do Islã que, ao
longo dos séculos, sempre ressurgiu em países muçulmanos.
Trata-se de um desejo ardente
de volta ao passado, a um idealizado estado de pureza que, supostamente, teria existido no
tempo do Profeta Maomé. No
século XIII, o líder religioso Ibn
Tayniyya já reclamava de que o
Islã havia se corrompido com
inovações de todo tipo e que era
preciso voltar a praticá-lo tal como no tempo do Profeta. No sé-
culo XVIII, Al-Wahhab, com o
mesmo tipo de pregação, varreu
toda a região da Arábia, praguejando contra tudo o que ele considerava estranho ao Islã original. Foi tão influente, que, quase
três séculos depois, a seita que
ele fundou é a religião dominante na Arábia Saudita. Tão dominante que sequer se apresenta
como seita: eles se dizem o verdadeiro Islã. Os sauditas dizem
que somente detratores os chamam de wahhabistas, numa referência ao fundador, justamente para irritá-los, já que, tendo
como norma cultuar apenas
Deus, insinuar que eles cultuam
al-Wahhab seria dizer que eles
próprios comentem o pecado
da Shirk, que atribuem a todos
os outros muçulmanos. Eles, no
máximo, se permitem chamar
de unitários (uma referência à
adoração do Deus único) ou,
também, salafis, que vem do termo árabe Salafi, uma palavra
que se refere às primeiras gera-
ções de muçulmanos, os pioneiros do tempo do Profeta (hoje,
os salafis seriam aqueles que vivem como os pioneiros viviam).
Essa visão do Islã, restrita a uma
pequena parte do mundo, é, no
entanto, a mais conhecida, porque, com o dinheiro do petró
leo, é a Arábia Saudita quem
mais financia a
abertura de mesquitas e escolas
muçulmanas em
todo o mundo:
nos Estados Unidos, por exemplo, 80% das mesquitas são sauditas e, portanto,
wahhabistas. O
que o Ocidente
acredita ser o Islamismo é apenas a pequena parte dele, a mais
conservadora, a mais fechada, a
mais repressora.
Em relação aos wahhabistas,
qual então a novidade de Hassan
al-Banna, ao criar a Irmandade
Muçulmana? Ele transpôs a pregação, do terreno do religioso,
para o campo político, e além do
que advogavam os wahhabistas,
ele postulou que a divisão do
mundo muçulmano em naçõesestado era essencialmente antiislâmica. Al-Banna queria a reunião de todos os muçulmanos
numa só nação, sob o comando
de um novo califa. Para ele, a miséria e os males que afligiam os
países islâmicos do início do sé-
culo passado, e ainda afligem,
eram razão direta dos desvios
que o Islã sofreu ao longo dos
anos. Ele costumava dizer de si,
imodesto: "Sou um altruísta que,
tendo desvendado o segredo sobre a existência, declaro ao mundo: Minhas orações, meu sacrifício, meu modo de vida são totalmente devotados a Deus. Ele é
Único. Isso me foi ordenado dizer e eu sou o primeiro dos mu-
çulmanos." Mas Al-Banna advertia: "O Islã é fé e devoção, é um
país e é cidadania, é uma religião
e um Estado, é espiritualidade e
trabalho duro, é o Alcorão e a espada." A Irmandade Muçulmana
foi um sucesso imediato entre o
povo pobre do Egito: seus membros se multiplicavam ao longo
dos anos. No início, Al-Banna assim classificava o movimento
por ele fundado: "A Irmandade
tem uma mensagem Salafi, segue
o caminho dos sunitas (em oposição aos xiitas), é uma organiza-
ção política, um grupo atlético,
uma união científica e cultural,
um empreendimento econômico
e uma idéia social." A Irmandade
era tudo.
O livro mais popular de AlBanna é também o mais curto:
"Carta a um estudante muçulmano", escrito em
1935, no qual ele
ensina como um
muçulmano deve
se comportar no
exterior. Há uma
lista de obriga-
ções duras, estritas, severas, mas
o que mais sobressai é a visão que ele tem do
Ocidente: uma região engolida
pelo pecado. "Todos os prazeres trazidos pela civilização contemporânea não resultarão em
nada, senão dor. Uma dor que
vai superar seus atrativos e remover a sua doçura. Portanto,
evite os aspectos mundanos
desse povo; não deixe que eles
tenham poder sobre você e o
enganem." Em 1934, já havia 50
filiais da Irmandade em todo o
Egito. Em 1939, passou a atuar
como grupo político organizado
e, depois de 1945, sofreu a sua
mudança mais radical: aderiu à
violência e ao terror, praticando
assassinatos políticos com o objetivo de derrubar a monarquia
egípcia. A Irmandade já tinha então duas mil filiais, 500 mil militantes e o dobro de simpatizantes: eles abriam escolas, mesquitas, hospitais, fábricas. Diziase que a Irmandade era um Estado dentro de um Estado. A
mudança radical foi possível
porque Al-Banna foi quem primeiro modificou o conceito de
Jihad, antes sempre definida de
duas maneiras: uma "guerra" interna que o crente deve travar
dentro de si para se manter no
reto caminho e uma guerra defensiva propriamente dita, em
caso de ataques de infiéis contra
uma nação muçulmana. Para AlBanna, Jihad passou a ser a
guerra que o muçulmano verdadeiro tem obrigação de travar
para reconverter o mundo mu
çulmano ao islamismo puro,
mesmo que, para isso, tenha de
pagar com a própria vida.
No livro, "A mensagem dos
ensinamentos", Al-Banna diz:
"Por sacrifício eu entendo dar-se
totalmente, sua riqueza, seu
tempo, sua energia e tudo o mais
pela causa do Islã. Não há Jihad
sem sacrifício, e não há sacrifício
sem uma recompensa generosa
por parte de Deus. Quem evita o
sacrifício são pecadores. Por isso, queridos irmãos, vocês entendem o nosso slogan: a morte
na luta por Deus é a nossa grande esperança." No mesmo livro,
Al-Banna define os cinco objetivos da Irmandade: "Deus é o
nosso objetivo, o Mensageiro é o
nosso exemplo, o Alcorão é a
nossa constituição, a Jihad é o
nosso método, e o martírio é o
nosso desejo." Em 1948, a Irmandade foi posta na clandestinidade, seus bens foram confiscados
e, no ano seguinte, Al-Banna,
com apenas 43 anos, foi assassinado por agentes secretos do
governo real egípcio, tornandose um mártir para os fanáticos e
um exemplo a ser seguido. O assassinato não teve o efeito que o
governo egípcio imaginou: a Irmandade tinha milhares de simpatizantes, espalhados por todo
o país, e eles já pareciam ter absorvido a mensagem de Al-Banna, como a que ele expôs no livro "A indústria da morte": "Para
uma nação que aperfeiçoa a indústria da morte e sabe como
morrer de forma nobre, Deus dá
uma vida de orgulho nesse mundo e eterna graça no mundo que
está por vir." Naqueles dias, militantes costumavam marchar
pelas ruas do Cairo, gritando:
"Nós não temos medo da morte;
nós a desejamos." A frase com
que a al-Qaeda costuma terminar suas declarações — vocês
amam a vida; nós, a morte —
vem daí.
Em 1950, o grupo voltou à legalidade e recebeu o apoio do
movimento nacionalista pan-arabista do coronel Gamal Abdel
Nasser, que também tentava
derrubar a monarquia. Em 54,
porém, quando Nasser assumiu
o poder, a Irmandade exigiu que
a Sharia se tornasse a lei no país.
Não foi atendida e foi posta novamente na ilegalidade. No mesmo ano, seus adeptos tentaram
matar Nasser, que, numa reação
furiosa, prendeu quatro mil militantes e cometeu o seu maior erro: expulsou do país outros milhares de simpatizantes, que seguiram para Síria, Arábia Saudita, Jordânia e Líbano, internacionalizando o movimento. Na Ará-
bia Saudita, eles foram abrigados com entusiasmo, porque
eram salafis, e receberam dinheiro do rei para que criassem a sua
própria universidade em Medina. O impacto disso na vida de
Bin Laden será grande. Em todos
os países para onde fugiram, foram abertas seções da Irmandade Muçulmana. O Egito era então um centro para onde iam estudantes de todos os países árabes e, por isso, jovens de todos
os países da região conheciam já
os ideais da Irmandade: com lí-
deres perto, abrir seções internacionais foi bem mais fácil.
Amanhã, na continuação desse artigo, mostrarei como Sayyid
Qutb transforma uma Jihad para
reconverter o mundo muçulmano ao Islamismo numa Jihad global, visando ao mundo inteiro.
Os leitores terão também uma
idéia sobre o estrago que uma
mulher bêbada e seminua pode
fazer na cabeça de um fanático.
E como o Ocidente inteiro pode
sofrer por isso.