"Ilusão de ótica eleitoral", O Globo, 13/07/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Ilusão de ótica eleitoral", O Globo, 13/07/2004

O debate corre o mundo, mas, por aqui, andava parado. Refiro-me à propaganda eleitoral na televisão, seja no modelo brasileiro, obrigatória e parcialmente subsidiada pelo contribuinte, seja no modelo americano, totalmente custeada pelos partidos. A pergunta que se faz é se ela é ética, correta, honesta com os eleitores. E eu emendo com outra: há algum mecanismo para defender o eleitor?

No Brasil, a resposta é não. A legislação é feita para proteger os políticos, não os eleitores. Um político ofendeu a honra de outro? Direito de resposta nele! O eleitor foi iludido? Nada a fazer. A culpa, no entanto, não é da Justiça Eleitoral, que aplica estritamente a lei. A culpa é dos pró- prios políticos: são eles que fazem a lei eleitoral e, claro, legislam em causa própria. O resultado, a curto prazo, são desvios éticos, na aparência pequenos, mas com poderoso efeito na eleição. A longo prazo, o resultado é o descrédito na política.

Não me refiro aqui às promessas que os candidatos não cumprem. A punição acaba vindo na eleição seguinte. O que me chama a atenção é a falta de ética nas técnicas usadas para passar essa ou aquela imagem do candidato, os truques que os marqueteiros usam sem sequer se dar conta de que a atitude tem nome: fraude. Os exemplos são muitos, e raro é o candidato que não pode ser citado.

A campanha de Lula, por exemplo. Os programas começavam assim: num lindo, amplo e bem decorado escritó- rio, dezenas de técnicos e políticos famosos apareciam trabalhando na elaboração do programa do PT. Lula passeava entre eles, abraçava uns, dava tapinha nas costas de outro e dizia qualquer coisa como: "E o programa de hoje será sobre agricultura." Mas era tudo falso, tudo cenário: o escritório não existia e ninguém ali estava trabalhando. Como Lula e o PT eram acusados de não ter nem programa nem equipe, a solução era excelente. Mas foi correta, foi ética? Quantos brasileiros não terão se enganado, acreditando que aquilo era realidade? O PT certamente estava elaborando um programa de governo, talvez tivesse um escritório central. Por que não mostrá-lo como de fato ele era? O mesmo se pode dizer em relação às entrevistas em que Lula era sabatinado por jovens. O eleitor era levado a acreditar que as perguntas eram espontâneas, mas, na verdade, era tudo ensaiado. É correto iludir o eleitor? A campanha de Serra não ficou atrás. O formato de alguns programas imitava um telejornal, com informa- ções sendo dadas como se fossem notícias, e, portanto, verdades, mas eram propaganda eleitoral. Por que confundir duas linguagens em tudo opostas? Para iludir o eleitor? E as entrevistas feitas por Gugu e Valéria Monteiro, também como se fossem espontâneas, quando, na verdade, eram ensaiadas? Para um candidato então com fama de antipático, usar um apresentador então popular pode ter sido uma estratégia correta. Mas, ainda uma vez, eu pergunto: é ético? Nada disso se aplica ao marketing de produtos, que evoluiu muito eticamente. Ninguém vende aquilo que o produto não oferece, porque é contraproducente, o consumidor descobre minutos depois da compra. O publicitário trabalha para realçar as qualidades que o produto de fato tem, mesmo que elas sejam intangíveis, como status etc. Se ferir a ética, a auto-regulamentação do setor pune o faltoso imediatamente. Já o candidato, se eleito, tem de ser "consumido" pelos 4 anos seguintes. E o TSE está de mãos amarradas. O certo seria obrigar os candidatos a colocar legendas bem grandes para identificar o que se mostra. Sobrepondo-se às cenas do escritório, estampar: SIMULAÇÃO. Nas entrevistas falsas, escrever: PERGUNTAS E RESPOSTAS PREVIAMENTE ENSAIADAS. Na cena do telejornal, pôr o letreiro: TELEJORNAL DE MENTIRINHA. Se essas legendas destroem as cenas e as fazem perder a utilidade, não seria isto a prova maior de que o recurso é antiético?

O horário eleitoral, do jeito que está, talvez explique o comportamento dos candidatos — não todos — que a cada eleição mais regras impõem para debates e que saem das entrevistas ofendidos, apenas porque se pergunta o que é de interesse do público e não do político. Talvez Mário Covas é que tivesse razão: o horário eleitoral deveria permitir apenas a presença dos candidatos nos estúdios, defendendo as suas propostas, exibindo gráficos quando necessário, mostrando filmes, comprovadamente reais, sobre suas realizações e só, como lembrou aqui no GLOBO o presidente do TSE, Sepúlveda Pertence. Ou, então, o TSE deveria ter o papel de fiscalizar o que é recurso ficcional e o que é realidade. Afinal, eleição não é novela e político não é ator. Ou não deveria ser.