Meu nome é Ali Ahmad Kamel Ali Harfouche, e tenho orgulho da minha
origem árabe. Meu pai,
Ahmad Kamel Harfouche, é sírio, assim como meu avô materno, Muhammed Ali, que viveu aqui por sessenta
anos até morrer em 1989. Filho e neto
de imigrantes, convivi com muitos
deles ao longo da vida, o que me permite identificar dois tipos; aquele
que vem ao país para trabalhar, acumular capital, com o projeto permanente de voltar à terra natal, e aquele
que vem ao país para trabalhar, acumular capital e deitar raízes. Um não
é melhor do que o outro, mas as estratégias de vida são diferentes.
Os primeiros procuram viver de
uma maneira mais isolada, mantêm a
família ligada aos costumes do seu
país de origem, controlam mais os filhos para que não se casem fora da
colônia. Os segundos abrem as portas
de sua casa para os costumes do país,
matriculam seus filhos em escolas da
localidade, estimulam que os filhos se
eduquem dentro dos costumes locais.
Entre os árabes, é comum que traduzam os próprios nomes por aproximação fonética, embora os significados
reais sejam bem diferentes: Ahmad vira Armando; Kamel, Camilo; Muhammed, Mamede; Nadin, Aladim.
Meu pai é do segundo tipo de imigrantes, assim como foi meu avô.
Eu nunca me afastei das tradições da Síria, conheço o país em
que vive a maior parte da minha família: adoro a culinária, o povo, a
cultura. Mas me sinto tão brasileiro
quanto qualquer José da Silva, não
me sinto menos brasileiro do que
qualquer brasileiro de quatrocentos anos de tradição. Sou brasileiríssimo, e ponto. E assim sou reconhecido por todos que me cercam.
Faço todo esse preâmbulo para
comentar, com a serenidade que o
tempo permite, os distúrbios na
França no fim do ano passado. Muitos já escreveram apropriadamente
que a situação de exclusão em que
se encontram os descendentes de
imigrantes é o que explica aquela situação.
Longe de mim dizer
que o racismo e a xenofobia não são um
problema na França.
Ao contrário, eu sinto
isso na pele toda vez
que vou lá. Se, em geral, eu não sou parado
nos aeroportos da Europa e, nos EUA, isso
aconteça comigo apenas raramente, na
França nunca houve
exceção: meu nome e minhas feições árabes me levam a ser parado
sempre. Certa vez, numa loja, a vendedora não se constrangeu ao me
perguntar se o cartão de crédito era
"mesmo" meu, insinuando que eu o
teria roubado. Em outra ocasião, fui
atendido tão mal numa loja (gritos,
seguranças a me cercar) que eu decidi voltar ao Brasil no mesmo dia:
se não queriam o meu dinheiro de
turista, tudo bem, eu o gastaria em
meu próprio país.
Essas experiências sempre realçaram em mim a consciência de que o
Brasil é um país especial. Aqui, todos
são acolhidos e têm as suas chances.
Naturalmente, aqui também há racismo, e em muita intensidade, como
em todas as sociedades humanas.
Mas não é um racismo estrutural,
que barra a vida dos indivíduos discriminados. Eu mesmo já sofri o preconceito em meu próprio país: toda
vez que, na infância, eu fazia uma travessura mais travessa era chamado
de "turco fdp". Se eu paquerava menos timidamente uma menina, eu era
logo chamado de "turco safado". E,
hoje mesmo, quando escrevo sobre
cotas raciais, é freqüente que me xinguem de turco e que
me peçam que deixe o
país, como se eu não
fosse brasileiro. Nada
nem de longe perto do
que sofrem os negros
brasileiros, mas a discriminação dói. E, no
entanto, eu estudei onde quis, passei para os
cursos que o meu mérito permitiu e tive os
empregos que o meu
talento tornou possível. Nunca ninguém quis saber qual era a minha religião, se meu pai era muçulmano,
cristão ou ateu. Acho que em nenhum outro país do mundo não-árabe alguém com o nome como o meu
poderia ocupar o cargo de editorchefe de um grande jornal. Aqui isso
é possível, e isso diz muito acerca de
nosso caráter nacional.
Portanto, longe de mim dizer que o
problema da França não é o racismo.
Isso não me impede, contudo, de fazer reparos ao que andei lendo por
aqui. Dizer que os cidadãos franceses de origem árabe são cidadãos de
segunda classe é desconhecer a República Francesa. Todos os direitos
sociais a que um cidadão francês
com mil anos de tradição tem os de
origem árabe também têm: a mesma
pensão, o mesmo auxílio-desemprego, os mesmos tratamentos médicos,
as mesmas escolas, os mesmos programas sociais. Não existe a possibilidade de um cidadão francês ter direito a um programa e um cidadão
francês de origem árabe, não. A França, aliás, tem gastos sociais somente
levemente superados pelos países
nórdicos.
É preciso então agir em duas
frentes, mas os analistas só têm se
prendido a uma delas: o combate
intransigente ao racismo francês,
urgente, necessário. Sem isso, a sociedade francesa manterá um de
seus traços mais cruéis, e os jovens de ascendência árabe continuarão a ser os recordistas entre
os desempregados.
Mas integração é uma via de mão
dupla, e aqui falo na segunda frente.
É preciso também que as famílias de
origem árabe se integrem à vida
francesa. É preciso que os pais permitam que suas filhas se casem com
não-muçulmanos, é preciso que tirem os véus, é preciso estimular que
seus filhos não se isolem em grupos,
é preciso equipá-los para que enfrentem o racismo, é preciso que se
tornem 100% franceses. Do contrá-
rio, a França terá um imigrante de
um terceiro tipo, que nós aqui no
Brasil não conhecemos: aquele que
vai à França em busca de trabalho,
de acumular capital, mas não deseja
nem voltar ao seu país de origem
nem deitar raízes no que generosamente o acolheu.
É uma fórmula fadada ao fracasso.