Cláudio Duarte
Editora de Arte
Nas últimas férias, em novembro
passado, minha mulher e eu estávamos viajando de Amã, na Jordânia,
para Damasco, na Síria, e o motorista não parava de definir o caráter
nacional dos países da região. Fazia
com gosto. Dos iraquianos, dizia
que, antes da guerra, costumavam
ser bem-humorados, felizes, sempre prontos a contar uma piada.
Dos kuwaitianos, dizia que eram fechados, atrasados e severos com
as mulheres, mas com elites muito
extrovertidas e gastadoras quando
no exterior. A definição mais elogiosa, naturalmente, era para os jordanianos, um povo trabalhador, solidário, religioso, mas sem exageros.
E a definição mais cruel foi reservada para os sauditas.
"São uns prepotentes", dizia o motorista. "Eram uns beduínos sem dinheiro, mas, com o petróleo, passaram a se sentir os donos do mundo".
Para comprovar a tese, contava um
episódio que teria protagonizado:
"Um dia, pediram-me que eu os levasse para as coisas belas de Amã.
Era uma maneira sutil de me mandar
procurar mulheres, mas eu me fiz de
desentendido. Levei-os para a ruína
do Templo de Hércules. Quando chegamos, os sauditas, furiosos, perguntaram: 'Onde estão as mulheres?'
Era o que eu pretendia: ouvir isso
sem sutilezas".
O que o motorista disse que fez depois foi genial. "Eu disse a eles: 'Ah,
mulheres, agora entendo'. E rumei
direto para a embaixada da Arábia
Saudita. Na porta, botei-os para fora
dizendo que se eles queriam prostitutas que alugassem os serviços das
sauditas, porque, nas jordanianas,
eles não poriam as mãos jamais! Os
sauditas são assim".
Enfim, uma dessas generalizações
que nada dizem. Mas faço o relato
aqui porque a visão do motorista se
choca com a opinião de quase todos
os analistas. Para eles, o Iraque corre
o sério risco de se desintegrar após a
queda de Saddam Hussein por ser um
país artificial, "criado" pela Grã-Bretanha, que juntou três províncias autônomas e antagônicas. A fragmenta-
ção do país é de fato um prognóstico
possível, especialmente quando se
analisa a questão apenas com um
olho no passado recente. Mas, quando nos voltamos para o passado remoto e para o presente, a história pode ser outra.
Desde o século
XV até a Primeira
Grande Guerra, todo o Oriente Médio
estava sob o domí-
nio do Império Turco Otomano, que
em seus melhores
dias estendera-se
do norte da África
às portas de Viena.
As cidades e regiões que hoje formam os diversos países árabes
eram províncias autônomas desse
império, mas com governantes indicados pelo sultão turco, e sua
geografia guardava pouca semelhança com o mapa político atual: a
noção de país, tal como entendemos hoje, não existia ali.
A dominação turca nunca foi aceita pacificamente pelos povos da região e um certo nacionalismo árabe
desde logo se formou, acirrando-se
até atingir seu ápice no fim do século
XIX. Durante a Primeira Grande
Guerra, os turcos se aliaram aos alemães e, claro, os líderes árabes, em
troca de promessas de autonomia,
acabaram por apoiar os britânicos,
depois de um início vacilante. Foi o
que ficou conhecida como a "Revolta
Árabe", em que teve papel fundamental T. E. Lawrence, oficial inglês e
escritor, conhecido como Lawrence
da Arábia. Com a derrota dos alemães, o Império Turco desmoronouse. Mas a prometida autonomia demorou a chegar. As razões para isso
são as mesmas que ainda hoje são
ouvidas de alguns analistas: os árabes são atrasados e estão longe de
um nível satisfatório de civilização. E
foram expressas no artigo 22 do Pacto da Liga das Nações de 1919, que
criava o sistema de mandatos:
"Os princípios seguintes aplicamse às colônias e territórios que, em
conseqüência da guerra, cessaram
de estar sob a soberania dos Estados
que precedentemente os governavam e são habitados por povos ainda
incapazes de se dirigirem por si pró-
prios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O
bem-estar e o desenvolvimento desses povos formam uma missão sagrada de civilização, e convém incorporar no presente Pacto garantias
para o cumprimento dessa missão.
"O melhor método de realizar praticamente esse princípio é confiar a
tutela desses povos às nações desenvolvidas que, em razão de seus
recursos, de sua experiência ou de
sua posição geográfica, estão em situação de bem assumir essa responsabilidade e que consistam em aceitá-la: elas exerceriam a tutela na qualidade de mandatários e em nome da
Liga das Nações".
E, por mandato
da Liga, França e
Grã-Bretanha receberam o Oriente
Médio como área a
ser "supervisionada" até que a independência pudesse
ser "concedida"
àqueles povos. Aos
chefes árabes, a
Grã-Bretanha jurou
torná-los os governantes de suas na-
ções. O problema
começava aí: que
nações? Era preciso inventá-las.
A região de Hejaz, por exemplo, incluía as cidades santas muçulmanas
de Meca e Medina, e, ainda nos tempos do Império Turco, era governada
por Hussein Ibn Ali, o então patriarca
do clã Hashemita, que se dizia descendente direto do Profeta Maomé
(de fato, o Profeta era um hashemita
da tribo dos Quraish, mas a alegação
de que a família de Hussein descendia diretamente de Hashim, bisavô
do profeta, não pode ser
obviamente provada).
Hussein Ibn Ali liderou a
Revolta Árabe, proclamou-se rei de Hejaz e de
todos os árabes (seu propósito era unificá-los numa só nação) e, como recompensa, ao fim da
guerra, os britânicos reconheceram sua legitimidade e concordaram com
a criação do Reino Hashemita de Hejaz. Não bastasse isso, os britânicos
transformaram em governantes dois dos filhos de
Hussein, que participaram ativamente da Revolta Árabe: Faisal Ibn Hussein tornou-se rei da Síria
e o irmão dele, Abdullah Ibn Hussein,
tornou-se emir da Transjordânia,
que viria a ser a atual Jordânia. Mas o
que era a Transjordânia?
Até 1921, nunca um território tinha sido chamado por este nome.
Durante o Império Romano, aquela
região era conhecida como Província Judéia, mas, no ano 132, em represália às revoltas judaicas que não
paravam de eclodir mesmo após a
diáspora, o imperador Adriano mudou o nome da área para Província
Síria-Palestina, logo encurtado apenas para Palestina. Ao fim das Cruzadas, a região deixou de ser chamada
oficialmente de Palestina, embora os
habitantes locais usassem o nome
informalmente. Durante os quatrocentos anos de domínio otomano, a
região era ligada à Província de Damasco e governada de Istambul sem
que houvesse unidade política entre
seus habitantes: os que moravam na
margem ocidental do Rio Jordão
guardavam lealdade às cidades e aos
portos da costa do Mediterrâneo; no
norte, a associação era com a Síria; e,
no sul, eram leais aos chefes locais
da Península Arábica.
O nome Palestina só voltou oficialmente com a criação do Mandato
Britânico da Palestina, em 1920, que
englobava o que hoje são Jordânia,
Israel e parte da Síria. Com a crescente migração de judeus para a região,
irromperam os conflitos entre estes
e os árabes, numa onda de protestos.
Em 1921, Winston Churchill, como
secretário de Estado britânico para
as colônias, decidiu dividir o mandato em duas partes, criando, em 76%
da área, o novo mandato da Transjordânia, toda a margem leste do Rio
Jordão ("trans" quer dizer "além" e
contrapõe-se a "cis", que quer dizer
"aquém": portanto, Transjordânia
quer dizer "além do Rio Jordão" e
Cisjordânia, "aquém do Rio Jordão"). Estava criado um novo país,
com um governante de fora, da Ará-
bia (não palestino, portanto), o já
mencionado Abdullah Ibn Hussein.
Família de sorte: um pai, Hussein,
dois irmãos, Faisal e Abdullah, e três
reinos (reinos sim, mas não independentes, sob a supervisão "civilizadora" da Grã-Bretanha).
Nem tudo era perfeito, porém. A
França reclamou a Síria como mandato seu (e de fato era, assim como o
Líbano) e depôs Faisal do trono sírio.
Mas não faltou criatividade à Grã-
Bretanha, que deslocou Faisal para
um novo posto, como rei de uma nova área. A região era conhecida desde a Antiguidade pelo nome grego de
Mesopotâmia ("terra entre dois
rios", no caso, o Tigre e o Eufrates).
Foi o berço da civilização, onde os
sumérios inventaram a escrita e onde o mundo se encantou com os Jardins Suspensos da Babilônia. No sé-
culo VIII, conquistada pelos árabes,
que a islamizaram, foi o centro do Império Árabe até o século XIX, com a
então recém-construída Bagdá como capital. Ali, a
Grã-Bretanha juntou os curdos do
norte (em torno da
cidade de Mossul),
os sunitas ao centro
(em torno de Bagdá) e os xiitas ao sul
(em torno da cidade
de Basra), pôs tudo
no mesmo saco, batizou de Iraque, e
pôs Faisal como novo rei (na verdade,
uma eleição, muito
parecida com a que
Saddam Hussein costuma disputar,
foi levada a efeito e Faisal foi referendado por 96% da população). Assim,
a Grã-Bretanha, que tinha havia pouco perdido um reino hashemita,
criou outro, para mantê-los em três.
Apesar das aparências, no entanto, o Iraque era um país de laborató-
rio talvez em menor grau que a Jordânia. As três regiões de fato nunca
tinham formado antes na
História uma unidade política, mas viveram sempre, desde a fundação de
Bagdá, numa mesma área
de influência. Até mesmo
o nome Iraque, que em
árabe parece querer ser o
correspondente à Mesopotâmia, pois significa "a
margem fértil de um rio",
sempre batizou, ao menos geograficamente,
aquela região. Já no tempo do segundo califa, foram criadas cinco macroregiões, e o Iraque era a
maior delas, abrangendo
grande parte do que é hoje o Irã. Aliás, essa questão de nome é sempre
muito curiosa: a Pérsia,
sempre chamada assim,
mudou de nome, por decreto, em 1935, quando Reza Khan
Pahlavi rebatizou-a de Irã, que quer
dizer "terra dos arianos". Alguns historiadores dizem que a medida visou
a agradar a Hitler, mas o fato é que os
habitantes locais sempre se chamaram assim, numa referência ao fato
de que os primeiros colonizadores
da região foram mesmo os arianos,
que formaram a Média e a Pérsia,
dois reinos, que só foram unificados
na Pérsia em 539 a.C. por Ciro.
Mas voltemos ao Iraque. Não só o
nome é antigo, como também o país
está longe de ser um caldeirão de etnias, como têm dito alguns analistas,
que repetem a todo instante que o
país se divide entre curdos, sunitas e
xiitas. Ocorre que os curdos são de
fato um povo, com língua e costumes
próprios, mas são muçulmanos e sunitas. Já os sunitas, do centro, e os
xiitas, do sul, são todos árabes, embora pertençam aos ramos diferentes em que o islamismo se dividiu
desde o seu surgimento. Na verdade,
criado o Reino Hashemita do Iraque,
com um sunita como rei, partiu justamente do sul, de Basra, dos xiitas, a
maior pressão para que o país, unido, conseguisse a independência em
1932. Mantendo um sunita como rei
(a monarquia só duraria até 1958,
quando foi literalmente dizimada
por um golpe militar, o primeiro de
uma série, que acabou levando Saddam Hussein, um sunita, ao poder).
Não faz sentido, portanto, falar num
Iraque com três etnias. Os analistas
devem escolher entre dividi-lo em
duas etnias (árabes e curdos) ou em
dois grupos de fiéis de uma mesma
religião (xiitas e sunitas).
De qualquer forma, é muito duvidoso que os Estados Unidos apóiem
a criação de um país curdo ou de um
país xiita. Do total de curdos, 26% estão no Iraque, 34% na Turquia, 6% na
Síria e 6% no Irã. Nenhum desses paí-
ses veria com bons olhos um Curdistão independente e rico (há grandes
reservas de petróleo em Mossul): em
breve, o novo país estaria reivindicando a anexação das áreas curdas
vizinhas, o que seria chamar por
uma nova guerra. Também faz pouco
sentido que se apóie a divisão do
país entre sunitas e xiitas, mesmo
sendo os xiitas maioria. Simplesmente porque a principal cidade xiita,
Basra, fica ao sul, e é onde está a
maior parte do petróleo.
Um Estado xiita na região seria um
fator de desequilíbrio, seria um pólo
de atração e um estímulo para os xiitas da Arábia Saudita, uma minoria
sempre oprimida pelo ultra-ortodoxo islamismo vigente. E onde está o
petróleo saudita? Em grande parte,
no território habitado pelos xiitas.
Nem os Estados Unidos nem a Arábia
Saudita gostariam de uma confusão
como essa.
Arábia Saudita? Mas que país é esse? Meca e Medina não faziam parte
do Reino Hashemita
de Hejaz? Pois é, faziam, e esta é a última história sobre a
criação de países
que conto aqui. A
região da atual Ará-
bia Saudita era povoada por várias
províncias autônomas, com rixas seculares entre si. Abdel Aziz Ibn Saud,
depois de ter sua família derrubada do
poder na região de
Najd (onde está a cidade de Riad),
passou dez anos no exílio no Kuwait.
Quando voltou, retomou o poder e,
em 1915, assinou um tratado com a
Grã-Bretanha para se tornar líder de
um protetorado britânico em Najd.
Mas suas pretensões não pararam
ali. Aos poucos, porta-voz de um islamismo ultraconservador, foi guerreando e tomando para si cidades vizinhas. Em 1924, finalmente conquistou para si o Reino Hashemita de Hejaz, em poder dos hashemitas, que
teriam de se contentar com apenas
dois reinos: o da Transjordânia e o
do Iraque. Mais tarde, Saud conseguiu anexar também a província de
Dhahran, lar dos xiitas, onde se encontram as principais jazidas de petróleo. Era o início do que conhecemos hoje por Arábia Saudita.
De qualquer forma, apesar do que
se pode chamar de artificialismo na
formação moderna desses países, já
lá se vão 80 anos ou mais desde a sua
criação. Como a taxa de natalidade é
grande (e a expectativa de vida não é
boa), com certeza, seja de que província for, um jovem da Arábia Saudita se sente um saudita em primeiro
lugar, assim como um jovem de Basra ou Bagdá se dirá iraquiano com orgulho. O mesmo orgulho que fazia
com que o motorista jordaniano,
mesmo um palestino, abrisse um
sorriso para dizer: "Como é linda a
minha Jordânia."
Em vez de vaticinar o fim do mapa
político atual do Oriente Médio, é
preciso torcer para que ele se consolide. E as linhas que faltam para que
esse mapa fique pronto, todos nós
conhecemos. São aquelas que trarão
paz a palestinos e israelenses