Na recente visita que o Papa
Bento XVI fez à Turquia, quase
todos os jornais do mundo estamparam uma foto em que
uma muçulmana, em protesto, levanta
um cartaz onde se lê: "Jesus não é o filho
de Deus. Ele é um profeta do Islã". Imagino que muitos de nós brasileiros tenhamos estranhado e se interrogado sobre qual o papel de Jesus no islamismo.
O Natal foi ontem, uma boa ocasião para
entendermos melhor a questão.
Se apenas levássemos em conta a
maneira pela qual o Alcorão se refere a
Jesus (Issa, em árabe), já teríamos uma
idéia da reverência com que é tratado:
"Jesus, o filho de Maria", "o Messias",
"a Palavra de Deus", "a Palavra da Verdade", "um Espírito de Deus", "o Mensageiro de Deus", "o Servo de Deus", "o
Profeta de Deus", "Ilustre nesse mundo
e no próximo". Tirando Maomé, ninguém mais no Alcorão inspira tanto
respeito. E por quê?
Porque o Alcorão reconhece a natureza miraculosa de Jesus: Ele nasceu de
uma virgem, por intervenção direta do
Divino e, por isso, é um milagre de Deus.
Na sura XIX, Deus conta que o anjo Gabriel, transformado na figura perfeita de
um homem, foi ao encontro de Maria dizendo-se um mensageiro de Deus e lhe
anunciou: ela daria à luz um filho imaculado. Maria rebateu: "Como posso ter
um filho se nenhum homem me tocou e
se jamais deixei de ser casta?" O anjo lhe
respondeu: "Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para os homens, e será uma prova de Nossa misericórdia. E foi uma
ordem inexorável."
De acordo com o Alcorão, quando
Maria voltou ao seu povo, depois do
parto, recriminaram-na porque pensaram que ela deixara de ser casta. Maria
pediu então que interrogassem o bebê,
para espanto de todos: "Como falaremos a uma criança que ainda está no
berço?" Jesus então lhes disse: "Sou o
servo de Deus, o Qual me concedeu o
Livro e me designou como profeta. Fezme abençoado, onde quer que eu esteja, e me encomendou a oração e (a
paga do) zakat enquanto eu viver. E me
fez piedoso para com a minha mãe,
não permitindo que eu seja arrogante
ou rebelde. A paz está comigo, desde o
dia em que nasci; estará comigo no dia
em que eu morrer, bem como no dia
em que eu for ressuscitado."
Apesar disso, para os muçulmanos
Jesus não é filho de Deus, e a explicação que Deus dá no Alcorão é esta: "É
inadmissível que Deus tenha tido um
filho. Glorificado seja! Quando decide
uma coisa, basta-lhe dizer: Seja, e é."
Em outras palavras, Deus quis que Maria tivesse um filho sem a intervenção
do homem, e assim ocorreu. O versí-
culo 59 da sura terceira explica: "O
exemplo de Jesus, ante Deus, é idêntico ao de Adão, que Ele criou do pó, então lhe disse: Seja! e foi." Nem por isso
dizem que Adão é filho de Deus, retrucam os muçulmanos.
O Alcorão conta que Jesus fez muitos milagres: deu vida a um pássaro
de barro, fez um cego enxergar, curou
um leproso, ressuscitou um morto,
uma lista parecida com a que os cristãos conhecem. A missão de Jesus, segundo o Alcorão, foi trazer aos homens os Evangelhos e confirmar a lei
Mosaica que o precedeu. Aqui é preciso explicar que o islamismo aceita
como divinamente revelados a Torá,
livro sagrado dos judeus, e o Novo
Testamento, livro sagrado dos cristãos, mas acredita que eles, por não
terem sido corretamente preservados, foram corrompidos por versões
adulteradas, postas no papel muito
tempo depois: Deus, com o Alcorão,
pretendeu fazer uma correção de rumos, apontando, pela última vez, para
a Verdade antes revelada. É por isso
que todos os personagens e profetas
da Torá (o Antigo Testamento para os
cristãos) e dos Evangelhos são também comuns ao islamismo.
Isso nos leva a este ponto: o cartaz da
muçulmana turca errava ao dar a entender que Jesus, "um profeta do Islã", tem
o mesmo status que os demais. Na segunda sura, versículo 253, está dito:
"Desses mensageiros, preferimos uns a
outros. Dentre eles, há aquele a quem
Deus falou; e a algum deles Ele elevou
escalões, e concedemos a Jesus, filho de
Maria, as evidências, e amparamo-lo
com o Espírito Santo." Diz-se no islamismo que Jesus, ao nascer, diferentemente
de todos os outros homens, não foi tocado pelo demônio, o que fez dele um
homem sem pecado e sem tendência ao
pecado, uma qualidade que ele dividiria
apenas com a sua mãe, Maria.
Jesus é tão especial que o Islã não
aceita a sua crucificação: tudo não teria
passado de uma ilusão: Jesus subiu aos
céus em seu corpo físico. Seus algozes viram uma crucificação que nunca houve. Jesus, portanto, não morreu, mais
um milagre que Deus lhe concedeu. No
final dos tempos, Jesus voltará. Isso
não está dito claramente no Alcorão,
mas está bem assentado pela Suna, os
atos e ditos do Profeta Maomé, registrados por uma longa cadeia de testemunhos. Jesus voltará por uma das torres da Mesquita de Damasco, que o Papa João Paulo II visitou. Em seu retorno, Jesus derrotará o Anticristo que, à
época, estará levando horror ao mundo. Soa familiar? A diferença é que para
os muçulmanos Jesus governará a Terra como um rei justo por 45 anos, período durante o qual o leão conviverá
com a gazela e as crianças poderão,
sem perigo, brincar com serpentes. Ele
se casará, terá filhos e finalmente morrerá, como todos os homens. Será enterrado na Mesquita de Medina, onde
está a sepultura de Maomé. Ficará num
túmulo que dizem estar hoje vazio, entre as covas de Abu Bacre, o primeiro
califa, e Omar, o terceiro. A segunda
vinda de Jesus será um dos sinais que
precederão o Dia do Juízo Final, quando os mortos ressuscitarão e, como os
vivos, serão julgados, merecendo a vida eterna ou a eterna danação.
Tendo pai, avós paternos e avô materno muçulmanos, mãe e avó materna
cristãs e mulher judia, aprendi a ver
semelhanças entre as três religiões
monoteístas. Que haja tantas divergências entre elas, e tanta dor e divisão,
não é nada mais senão o sinal de que
somos humanos, muito humanos.