No meu artigo anterior, defendi a idéia de que o jornalismo
é uma forma de conhecimento, uma maneira de apreender a realidade. Afirmei que, diante de
uma miríade de fatos, os jornais, seguindo um determinado método, são
capazes de escolher o que é relevante.
E que é possível fazer isso com um
grau aceitável de objetividade e isenção (embora não sejam todos os veículos que se esforçam para tal). O artigo era uma resposta àqueles que
acham que existe apenas um jornalismo de tendências, e que tudo, editorial, páginas de artigos e noticiário em
geral, é produzido segundo os valores
e as crenças dos donos dos jornais e
dos jornalistas que para eles trabalham. Afirmei que quem pensa assim
se justifica sempre se escorando em
platitudes filosóficas: a objetividade é
um mito, a verdade é inalcançável etc.
Se fosse assim, o jornalismo não retrataria nem analisaria fatos, mas apenas a
visão que grupos têm deles. Eu disse
que um jornalismo produzido assim
não seria jornalismo, mas publicidade,
propaganda, porque teria como objetivo não informar, mas conquistar almas,
adeptos, seguidores. O jornalismo seria
apenas um campo de batalhas de ideologia. Embora reconhecesse que o jornalismo não consegue ser 100% objetivo, eu disse que, se bem-feito, consegue
uma aproximação da realidade, a melhor para aquele período histórico e a
partir do instrumental e dos recursos
disponíveis. Prometi tratar hoje de como isso é possível. Vamos lá.
O compromisso com a isenção é formal e deve ser uma busca consciente
de todos os jornalistas: deve-se sempre,
conscientemente, tentar despir-se de
seus preconceitos, de suas certezas, de
suas paixões, mesmo sabendo que isso
não é realizável totalmente. Se em jornalismo não se tem o tempo necessário
para se fazer a crítica aos próprios valores, que um antropólogo ou um soció-
logo fará antes, durante e depois de
qualquer pesquisa, isso não quer dizer
que o jornalista deve relaxar seu autocontrole e deixar que suas crenças e
seus preconceitos contaminem o seu
trabalho cotidianamente. Deve-se sempre evitar idiossincrasias ("esse tipo de
assunto eu não noticio", "fulano não
merece uma linha de jornal", "esse cara
é um escroque, merece mesmo apanhar"). Um bom exercício é tentar abrir
sempre espaço a quem pensa diferente,
a quem aparentemente está errado, a
assuntos de que o jornalista não gosta.
Esse é o ponto de partida, o básico,
aquilo que está em todo manual. Mas se
sabemos que isso na prática não é realizável em 100% do tempo, se somente
uma máquina ou um santo conseguiria
o autocontrole desejável, isso quer dizer que o jornalismo estará sempre longe da isenção e da objetividade?
Não, porque o processo mesmo de
produção de notícias tem mecanismos
que ajudam a evitar desvios inconscientes ou propositais. Como o jornalismo é por definição uma obra coletiva,
toma parte de todos os processos e de
todas as decisões uma multiplicidade
de cabeças, cada uma com seus valores
individuais, seus preconceitos, suas
tendências. Um preconceito tende a anular o outro, uma decisão enviesada
tende a ser revista ao longo do dia pela
reação de colegas que pensam diferente. Não se trata de uma discussão eterna ou de uma guerra sem fim, mas de
um processo natural, de que poucos se
dão conta conscientemente. Mas que
existe. Quando um fato chega à redação, é muito comum que se ouça de primeira um "isso não vale" para, logo a
seguir, ver-se instalar uma discussão rápida, mas intensa, sobre se "isso vale
ou não vale mesmo", num debate extremamente produtivo. Em redações saudáveis, sem a presença de editores
idiossincráticos, o resultado acaba sendo um noticiário mais perto da objetividade possível (e editores idiossincrá-
ticos, mostra a experiência, acabam expulsos do mercado, porque a arte de
editar é a arte de saber ouvir).
Mesmo que essa vacina natural falhe, porém, outra entra em ação para
corrigir eventuais desvios: a concorrência entre empresas jornalísticas
que disputam o mesmo público. O que
um jornal não dá, por omissão deliberada ou por incompetência, o outro
dará (e este outro é o concorrente direto, mas também a internet, o rádio, a
televisão). Não existe conluio possível
entre empresas jornalísticas que competem entre si. Não existe silêncio coletivo auto-imposto. Se o jornal que
pecou ou errou não se corrigir, acaba
manchado, fora do mercado.
Quem melhor entendeu que o jornalismo é uma forma de conhecer a
realidade, com as características que
procurei detalhar até aqui, foi a grande imprensa e o seu público. Este exige dela informações que supõe serem as que mais se aproximam da realidade. Querem conhecer para depois formar opinião. Quando percebe que um
jornal lhe solapa isso, deixa de comprá-lo. A grande imprensa há muito
entendeu isso. É a única que, de maneira organizada, consegue reunir os
recursos tecnológicos e humanos capazes de decodificar a realidade imediata e recodificá-la de modo a ser entendida pelo público. Ela é a única que
investe grandes somas de dinheiro em
tecnologia de ponta, cada vez mais sofisticada, para que o jornalismo possa
cumprir uma de suas obrigações básicas: informar com rapidez. É também a única capaz de atrair pessoal
qualificado e, na ausência dele, de
qualificar pessoal de modo a torná-lo
apto a desempenhar a sua tarefa.
Se mais não for, trata-se de uma questão de sobrevivência. Grupo de mídia
algum trocará a sua reputação de longo
prazo, garantidora de sua audiência e
de sua credibilidade, e, portanto, de
seus lucros, para se imiscuir na vida política da sociedade visando a obter benefícios de curtíssimo prazo. Quem pode fazer isso são experiências "jornalísticas" efêmeras, de oportunidade; mas
estas, ao enveredarem por esse caminho, abandonam o jornalismo para praticar algo que, como disse antes, na verdade é apenas publicidade.
Um desses que fizeram essa opção
escreveu outro dia: "Ninguém é santo."
Talvez este seja o único ponto em que
concordamos. Mas o fato de que somos
todos humanos não significa dizer que
todos erremos de propósito.