Participei da cobertura da convenção do Partido Democrata
que oficializou a candidatura
de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos, e, durante
aquele período, foi para mim impossível deixar de fazer comparações com a
nossa vida política aqui no Brasil. Entre as muitas coisas que me causaram
impressão, destaco três.
No início e ao final de cada dia de
trabalho, um religioso fazia uma ora-
ção, assistida por todos ali presentes.
Foram sete religiosos cristãos e um rabino, pedindo a Deus proteção para os
candidatos e bênçãos para que o país
continue progredindo. Todos os delegados e convidados participavam com
fervor das orações: olhos fechados, alguns com as mãos espalmadas para o
alto, um semblante demonstrando fé.
Tudo isso na convenção do partido
mais à esquerda dos Estados Unidos,
defensores de valores menos conservadores, a favor do aborto, do casamento gay, da nova família. Não imagino algo parecido em nenhuma conven-
ção política brasileira. Alguém que puxasse um Pai Nosso seria imediatamente vaiado, com certeza. Ou falaria
para o deserto.
Sou francamente favorável à separa-
ção entre Igreja e Estado, e abomino o
uso da religião para fins políticos. Mas,
confesso, gostei de ver que os americanos professam a sua fé assim em pú-
blico de forma tão aberta, sem temer
ser motivo de escárnio. Não, não era
apenas pose de políticos treinados para a televisão: no estádio em que Obama fez o seu discurso, 85 mil pessoas,
gente comum da cidade de Denver,
agiu da mesma forma. Vim com uma
certeza: não é mais impossível (ainda
bem) eleger presidente uma mulher ou
um negro, mas continua totalmente impossível fazer o mesmo com um ateu.
Outra peculiaridade da vida política
americana é a maneira aberta com que
eles resolvem as diferenças. Certamente houve muitos socos e pontapés entre Hillary e Obama nos bastidores, como parece ser da natureza do político.
Mas o mundo inteiro pôde assistir às
claras à disputa acirrada entre ambos,
todos nós testemunhamos a relação
belicosa entre os dois, as muitas discordâncias e o tom ácido que adotaram um em relação ao outro por 18 meses a fio. Tudo diante das câmeras de
televisão, nas páginas dos jornais. Um
conflito que só acabou durante a convenção, com Hillary tendo todo o espaço para sarar as feridas e demonstrar a
importância que tem. Derrotada, a declaração de união não me pareceu apenas da boca para fora. Ainda vamos
precisar esperar um pouco para ver se,
de fato, Hillary sairá a campo para garantir a Obama os 18 milhões de votos
que conseguiu angariar durante as primárias. Mas a coisa parece que vai: ontem, ela estava na região central da Flórida, um estado em que se saiu vitoriosa e é fundamental para os democratas, fazendo campanha para Obama.
Por aqui, esse tipo de comportamento é raro, se não inexistente. As facções internas de nossos partidos se escalpelam, mas bem longe do público.
Diante das câmeras e dos jornais, apenas um comportamento alinhado, no
máximo um muxoxo pouco ressonante. Quando uma corrente sai vitoriosa,
a outra jura amor eterno, mas não mexe uma palha para ajudar: prefere ver o
correligionário perder a dar a ele (e ao
partido) o gostinho da vitória. Eu poderia dar muitos exemplos, mas o leitor tem pencas deles para escolher.
Bom proveito.
O que me chamou mais a atenção,
porém, foi perceber que ao menos uma
das queixas que temos em relação aos
nossos partidos talvez seja apenas um
anacronismo: tenho certeza de que o
leitor já terá ouvido a lamúria segundo
a qual os nossos partidos são amorfos,
pouco coerentes ideologicamente e
que não passam de frentões. O PMDB é
o exemplo maior, mas já não escapam
da crítica PSDB e até mesmo o PT. Mas
o que são o Partido Republicano e o
Partido Democrata, senão frentões de
tendências? Há coisa menos parecida
com Bush do que MacCain? Mitt
Romney e Mike Huckabbe se parecem
em que com Rudolph Giuliani? E mesmo Obama, o que mesmo ele tem em
comum com John Edwards ou John
Kerry ou Al Gore? Reina lá uma certa
geléia, cujo molde é um pequeno rol de
crenças e valores comuns, em torno
dos quais tudo o mais depende da cabeça de cada político (isso sem falar
que republicanos e democratas já não
são como água e óleo, porque comungam fortemente de um núcleo de valores que definem a nação: democracia,
liberdade de expressão, livre mercado,
direitos individuais etc.). O grande pulo-do-gato é que é o povo quem decide
qual a corrente majoritária, ao dar a
ela o direito de concorrer à Presidência.
Aqui, não deveria ser visto como
uma anormalidade o fato de que os
grandes partidos têm a mesma flacidez, tomando a forma do líder de plantão (quando ele existe) ou ficando
meio amorfo mesmo, quando eles são
vários. Em torno de um núcleo comum
de valores, não haveria mal que os partidos fossem tão diversos quanto os líderes que têm. Por que isso? Porque
quando a sociedade sabe os valores
que quer perseguir — como nos EUA,
democracia, liberdade de expressão, livre mercado, direitos individuais etc.
— tudo o mais pode mesmo variar segundo as várias cabeças que compõem
um partido. São elas que vão propor as
soluções de curto e longo prazos para
os problemas que aquela sociedade
enfrenta. Sonhar com partidos ideologicamente coerentes e rígidos, e, portanto, autoritários, é sonhar com um
tempo passado, em que se acreditava
que poderia haver vida fora das sociedades abertas.
O problema é que, aqui, está faltando uma etapa: quando o povo é chamado a decidir, já o faz escolhendo entre
aquelas correntes que, em seus respectivos partidos, tornaram-se majoritárias apenas depois de uma luta de
foice em quarto escuro, longe do escrutínio público.
Mas isso tem cura.