Se o leitor perguntar a um amigo se
ele é a favor da remoção de favelas, a resposta será negativa. Remoção, no Rio, é sinônimo de palavra maldita. Resumir a política de assentamento de favelados de Carlos Lacerda a uma palavra tão simples e pejorativa
como remoção foi mesmo a maior arma
dos oponentes do lacerdismo. Afinal, pessoas são assentadas; lixo é removido.
Uma entrevista recente da professora
Sandra Cavalcanti ao No Mínimo
(www.nominimo.com.br) ajuda a entender o processo que transformou uma
idéia sensata num palavrão. E faz a gente
se dar conta de que Lacerda e Brizola não
estavam apenas em extremos opostos do
espectro político: o que um tentou fazer
para o bem, o outro desfez, embora sem
esta intenção, para o mal.
Lacerda começou a pensar em favelas
já em 1948, quando lançou uma série de
13 artigos no "Correio da Manhã", conhecidos como a "Batalha do Rio", com ampla repercussão. O objetivo era propor
uma solução ao "mais urgente problema
carioca", mas sem paternalismo, pois "os
favelados teriam de andar pelas próprias
pernas". Eleito governador em 1960, Lacerda deu início a um ambicioso plano de
assentamento de favelados, ajudado por
Sandra.
Nos quatro anos seguintes, Lacerda
construiu cerca de 25 mil casas para a
transferência de 16 favelas, como a do
Pasmado, entre Botafogo e Copacabana,
Esqueleto, onde hoje é a Uerj, Maria Angu, onde hoje é o Mercado São Sebastião,
Macedo Sobrinho, no Humaitá, onde hoje
se ergue um Ciep, Getúlio Vargas, ao lado
do Hospital Miguel Couto. Foi um trabalho milimetricamente planejado. As famílias, cadastradas pelos moradores,
eram levadas para conhecer o novo bairro e comprovar que transporte não seria problema: duas linhas
de ônibus foram criadas, o
que garantia, na época, chegar ao Centro em meia hora. Não se pensou em construir prédios, mas casas,
porque eram mais do agrado das famílias, podendo
ser ampliadas.
Contando assim, parece história da carochinha, mas há fontes a comprovar que
tudo foi pacífico. O site "Favela tem memória" (www.favelatemmemoria.com.br),
radicalmente contra a política de transferências, considera que as comunidades
foram destruídas, não transferidas. Mas,
honestamente, não esconde o depoimento de Dilmo Ferreira, morador da antiga
Favela do Esqueleto: "As famílias cadastradas eram levadas para os conjuntos
habitacionais e os barracos iam sendo
derrubados. Achei tudo muito rápido,
mas não houve desrespeito."
Com a vitória de Negrão de Lima, opositor de Lacerda, o programa se desvirtuou. Cidade de Deus estava inacabada,
mas a enchente de 66 levou Negrão a
transferir para lá os desabrigados, sem
nenhum preparo prévio, como houvera em Vila Kennedy. Depois, os militares criaram a Chisam (Coordena-
ção da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana), que agravou o
problema ao transferir favelas, até meados dos anos
70, para prédios de apartamentos, sem método, sem
tato e sem garantia de
transporte. Lacerda e Sandra nada tinham com aquilo, mas levaram a fama.
O ponto sem retorno foi Brizola. Até
ali, um decreto impedia construções de
alvenaria nas favelas. É uma questão delicada, porque morar entre paredes de tijolo é melhor do que entre paredes de
madeira. Mas, ao proibir, o poder público
impedia que o temporário se tornasse perene e se obrigava a ver as favelas como
são: problema e não solução. Brizola fez
diferente: não construiu uma casa sequer,
mas pôs um fim à proibição, fazendo com
que os favelados gastassem a sua poupança em material de construção, em terrenos instáveis, em encostas perigosas.
O "Favela tem Memória", apoiando a
iniciativa, mostra, porém, o que aconteceu, no relato de um morador do Morro
da Coroa, que só trocou a madeira por tijolo no governo Brizola: "Foi quando veio
a ordem de liberar geral. Antes disso todo
mundo tinha medo de fazer uma melhoria no barraco e depois perder tudo." Em
outro depoimento, o site se refere ao
Complexo do Alemão: "A explosão demográfica, no entanto, só ocorreu na década
de 80, quando o então governador Leonel
Brizola autorizou as invasões e a favela se
multiplicou."
Dois adversários, duas trajetórias,
duas maneiras de governar. Lacerda tentou resolver um problema, partindo para
a ação, em benefício dos favelados. Brizola tentou a mesma coisa, mas optou pela inação, também em benefício dos favelados. Com Lacerda, a cidade saiu ganhando; com Brizola, o resultado está
aí.
Quarenta anos depois, não há mais solução única. Uma coisa é certa: habitação
não caminha sem transporte. E remoção
tem de voltar a ser chamada pelo nome
certo.