"Lacerda e Brizola", O Globo, 01/06/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Lacerda e Brizola", O Globo, 01/06/2004

Se o leitor perguntar a um amigo se ele é a favor da remoção de favelas, a resposta será negativa. Remoção, no Rio, é sinônimo de palavra maldita. Resumir a política de assentamento de favelados de Carlos Lacerda a uma palavra tão simples e pejorativa como remoção foi mesmo a maior arma dos oponentes do lacerdismo. Afinal, pessoas são assentadas; lixo é removido. Uma entrevista recente da professora Sandra Cavalcanti ao No Mínimo (www.nominimo.com.br) ajuda a entender o processo que transformou uma idéia sensata num palavrão. E faz a gente se dar conta de que Lacerda e Brizola não estavam apenas em extremos opostos do espectro político: o que um tentou fazer para o bem, o outro desfez, embora sem esta intenção, para o mal.

Lacerda começou a pensar em favelas já em 1948, quando lançou uma série de 13 artigos no "Correio da Manhã", conhecidos como a "Batalha do Rio", com ampla repercussão. O objetivo era propor uma solução ao "mais urgente problema carioca", mas sem paternalismo, pois "os favelados teriam de andar pelas próprias pernas". Eleito governador em 1960, Lacerda deu início a um ambicioso plano de assentamento de favelados, ajudado por Sandra.

Nos quatro anos seguintes, Lacerda construiu cerca de 25 mil casas para a transferência de 16 favelas, como a do Pasmado, entre Botafogo e Copacabana, Esqueleto, onde hoje é a Uerj, Maria Angu, onde hoje é o Mercado São Sebastião, Macedo Sobrinho, no Humaitá, onde hoje se ergue um Ciep, Getúlio Vargas, ao lado do Hospital Miguel Couto. Foi um trabalho milimetricamente planejado. As famílias, cadastradas pelos moradores, eram levadas para conhecer o novo bairro e comprovar que transporte não seria problema: duas linhas de ônibus foram criadas, o que garantia, na época, chegar ao Centro em meia hora. Não se pensou em construir prédios, mas casas, porque eram mais do agrado das famílias, podendo ser ampliadas.

Contando assim, parece história da carochinha, mas há fontes a comprovar que tudo foi pacífico. O site "Favela tem memória" (www.favelatemmemoria.com.br), radicalmente contra a política de transferências, considera que as comunidades foram destruídas, não transferidas. Mas, honestamente, não esconde o depoimento de Dilmo Ferreira, morador da antiga Favela do Esqueleto: "As famílias cadastradas eram levadas para os conjuntos habitacionais e os barracos iam sendo derrubados. Achei tudo muito rápido, mas não houve desrespeito."

Com a vitória de Negrão de Lima, opositor de Lacerda, o programa se desvirtuou. Cidade de Deus estava inacabada, mas a enchente de 66 levou Negrão a transferir para lá os desabrigados, sem nenhum preparo prévio, como houvera em Vila Kennedy. Depois, os militares criaram a Chisam (Coordena- ção da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana), que agravou o problema ao transferir favelas, até meados dos anos 70, para prédios de apartamentos, sem método, sem tato e sem garantia de transporte. Lacerda e Sandra nada tinham com aquilo, mas levaram a fama.

O ponto sem retorno foi Brizola. Até ali, um decreto impedia construções de alvenaria nas favelas. É uma questão delicada, porque morar entre paredes de tijolo é melhor do que entre paredes de madeira. Mas, ao proibir, o poder público impedia que o temporário se tornasse perene e se obrigava a ver as favelas como são: problema e não solução. Brizola fez diferente: não construiu uma casa sequer, mas pôs um fim à proibição, fazendo com que os favelados gastassem a sua poupança em material de construção, em terrenos instáveis, em encostas perigosas.

O "Favela tem Memória", apoiando a iniciativa, mostra, porém, o que aconteceu, no relato de um morador do Morro da Coroa, que só trocou a madeira por tijolo no governo Brizola: "Foi quando veio a ordem de liberar geral. Antes disso todo mundo tinha medo de fazer uma melhoria no barraco e depois perder tudo." Em outro depoimento, o site se refere ao Complexo do Alemão: "A explosão demográfica, no entanto, só ocorreu na década de 80, quando o então governador Leonel Brizola autorizou as invasões e a favela se multiplicou."

Dois adversários, duas trajetórias, duas maneiras de governar. Lacerda tentou resolver um problema, partindo para a ação, em benefício dos favelados. Brizola tentou a mesma coisa, mas optou pela inação, também em benefício dos favelados. Com Lacerda, a cidade saiu ganhando; com Brizola, o resultado está aí.

Quarenta anos depois, não há mais solução única. Uma coisa é certa: habitação não caminha sem transporte. E remoção tem de voltar a ser chamada pelo nome certo.