"O legado de Tim", O Globo, 31/05/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O legado de Tim", O Globo, 31/05/2005

Quando me ligaram na madrugada da última quarta-feira para dar a notícia da condenação do assassino de Tim Lopes, eu me lembrei imediatamente do telefonema de três anos antes, mais ou menos no mesmo horário, quando me disseram que Tim não voltara da reportagem que fora fazer. O primeiro telefonema foi aterrorizante, prenúncio da tragédia que se abateria sobre a família de Tim, seus amigos e seus companheiros de trabalho. O telefonema da semana passada, porém, não trouxe conforto, sentimento de vingança ou satisfação. Reagi como se aquela condenação fosse a única resposta que a sociedade poderia oferecer, o mínimo, o absolutamente necessário diante do sacrifício de Tim.

A resposta que ainda está por vir é aquela pela qual Tim entregou a vida com suas denúncias: libertar as comunidades carentes do jugo do tráfico. Dizer isso soa grandiloqüente, pura retó- rica, porque inalcançável. Mas, hoje, véspera do aniversário do assassinato dele, uma coisa para mim é clara. Se em vida Tim contribuiu para aprimorar o jornalismo brasileiro, sua morte trouxe como conseqüência uma mudança de postura decisiva no nosso trabalho como jornalistas.

Antes, nós, repórteres de todas as redações, víamos o tráfico ora como uma aberração, ora como parte da paisagem. Não era uma distinção feita de maneira consciente, porém. Era algo ditado pela necessidade, o caminho mais fácil. Quando saía da rotina, quando "barbarizava", o tráfico era retratado inequivocamente como inimigo, como chaga. Mas, em outras ocasiões, era apenas ignorado, tomado como algo que todo mundo sabe que existe, como algo que simplesmente está lá. Uma postura, digamos, resignada.

Eu me lembro de quando comecei na profissão, há mais de vinte anos. Num mês de dezembro, um deslizamento de terra matara nove moradores do Pavão-Pavãozinho. Com poucos meses na redação, eu, que nunca tinha entrado numa favela, fui escalado para participar da cobertura daquela tragédia. Ao subir o morro, vi muitos bandidos armados, não tão ostensivamente como hoje (eles, "respeitosamente", cobriam as armas quando nós passávamos). Apurei tudo e cheguei à redação acreditando que tinha outra matéria além daquela sobre as mortes: bandidos armados circulavam livremente na favela. Fui tratado como o foca que de fato era: "Nunca foi ao morro, não sabe o que é notícia. Aquilo tem todo dia, não é novidade. Faz só o deslizamento", disse-me o editor, achando graça de minha falta de experiência.

O mesmo tipo de atitude que nos levou, durante muitos anos, a estabelecer uma norma de conduta que, implicitamente, aceitava o poder do tráfico. Reportagem sobre um deslizamento, falta d'água, um morador da favela, um artista, um estudante, um artesão, um trabalhador, uma professora, um mestre-de-obras, uma passista, um policial? Tudo bem, mas, antes de entrar, procurávamos sempre aquele sinal sutil, vindo de qualquer um, mas geralmente de um membro da associação de moradores: "Pode subir, tá limpo." Pronto, subíamos, fazíamos o trabalho e voltávamos seguros para as reda- ções. Homens armados? Se não estivessem perturbando, eram paisagem. A não-matéria.

O assassinato de Tim mudou tudo. Em muitos encontros, reuniões e seminários, foi como se toda uma categoria despertasse ao mesmo tempo para um erro de muitos anos: não há nada de natural no tráfico, ele não deve ser nunca visto como paisagem e jamais se deve aceitar o consentimento do tráfico, mesmo que sutil, mesmo que dado de forma velada, indireta, para que façamos o nosso trabalho. Os traficantes estão ali indevidamente e é nosso papel mantê-los sempre nessa condição de estranhos, de usurpadores.

A questão é delicada, porque o trabalho jornalístico em comunidades carentes se tornou muito mais complicado, muito mais difícil. Se deixaram de ser paisagem, se não há consentimentos sutis, o risco é sempre maior. Este é o maior desafio do jornalismo brasileiro: continuar cobrindo o que acontece nas comunidades carentes, porque não fazê-lo é criar zonas de exclusão, num ambiente dominado por um inimigo declarado. Um retrospecto do nosso trabalho, nestes últimos três anos, mostra que temos conseguido. Com muitas, imensas dificuldades, é verdade. Mas com êxito.

Os menos otimistas estavam certos de que essa mudança de atitude seria efêmera. Não foi. Três anos depois, a postura de nós, jornalistas, não mudou um milímetro. Devemos isso ao Tim, um colega de quem não consigo falar sem me emocionar profundamente. Tim era especial: reunia ao mesmo tempo exuberância profissional e simplicidade no trato com os colegas, dedicação total ao trabalho e um espírito leve e brincalhão, vocação enorme para o furo, para a grande reportagem, e a disposição para trabalhar também nas tarefas mais rotineiras. Tim será sempre uma referência porque representava o que de melhor um profissional pode ser. Em tempos em que o estrelismo é tão freqüente, ele tinha a consciência de que a reportagem é sempre mais importante que o repórter. Sua morte, eu digo sempre, transformou-o num mártir. Algumas pessoas não gostam dessa palavra, mas ela é exata. E justa. Tim é um mártir do jornalismo brasileiro.

O martírio de Tim provocou em nós essa mudança. Temo, porém, que ela custe muito a chegar a outros setores da sociedade. Submetidos à equação cruel de que o trabalho social, cultural e comunitário em áreas dominadas pelo tráfico não pode ser levado adiante em confronto aberto com o tráfico, muitos continuam agindo como os jornalistas agíamos antes: vendo o tráfico ora como aberração, ora como paisagem.

Este é um nó que eu não sei como desatar. Mas, no meu íntimo, eu tenho uma certeza: se encarado como paisagem, é como paisagem que o tráfico se perpetuará.