Quando me ligaram na madrugada da última quarta-feira para dar a notícia da
condenação do assassino
de Tim Lopes, eu me lembrei imediatamente do telefonema de
três anos antes, mais ou menos no
mesmo horário, quando me disseram
que Tim não voltara da reportagem
que fora fazer. O primeiro telefonema
foi aterrorizante, prenúncio da tragédia que se abateria sobre a família de
Tim, seus amigos e seus companheiros de trabalho. O telefonema da semana passada, porém, não trouxe
conforto, sentimento de vingança ou
satisfação. Reagi como se aquela condenação fosse a única resposta que a
sociedade poderia oferecer, o mínimo, o absolutamente necessário
diante do sacrifício de Tim.
A resposta que ainda está por vir é
aquela pela qual Tim entregou a vida
com suas denúncias: libertar as comunidades carentes do jugo do tráfico. Dizer isso soa grandiloqüente, pura retó-
rica, porque inalcançável. Mas, hoje,
véspera do aniversário do assassinato
dele, uma coisa para mim é clara. Se
em vida Tim contribuiu para aprimorar o jornalismo brasileiro, sua morte
trouxe como conseqüência uma mudança de postura decisiva no nosso
trabalho como jornalistas.
Antes, nós, repórteres de todas as
redações, víamos o tráfico ora como
uma aberração, ora como parte da paisagem. Não era uma distinção feita de
maneira consciente, porém. Era algo
ditado pela necessidade, o caminho
mais fácil. Quando saía da rotina, quando "barbarizava", o tráfico era retratado inequivocamente como inimigo, como chaga. Mas, em outras ocasiões,
era apenas ignorado, tomado como algo que todo mundo sabe que existe,
como algo que simplesmente está lá.
Uma postura, digamos, resignada.
Eu me lembro de quando comecei
na profissão, há mais de vinte anos.
Num mês de dezembro, um deslizamento de terra matara nove moradores do Pavão-Pavãozinho. Com poucos meses na redação, eu, que nunca
tinha entrado numa favela, fui escalado para participar da cobertura daquela tragédia. Ao subir o morro, vi
muitos bandidos armados, não tão
ostensivamente como hoje (eles,
"respeitosamente", cobriam as armas
quando nós passávamos). Apurei tudo e cheguei à redação acreditando
que tinha outra matéria além daquela
sobre as mortes: bandidos armados
circulavam livremente na favela. Fui
tratado como o foca que de fato era:
"Nunca foi ao morro, não sabe o que
é notícia. Aquilo tem todo dia, não é
novidade. Faz só o deslizamento",
disse-me o editor, achando graça de
minha falta de experiência.
O mesmo tipo de atitude que nos levou, durante muitos anos, a estabelecer uma norma de conduta que, implicitamente, aceitava o poder do tráfico.
Reportagem sobre um deslizamento,
falta d'água, um morador da favela, um
artista, um estudante, um artesão, um
trabalhador, uma professora, um mestre-de-obras, uma passista, um policial? Tudo bem, mas, antes de entrar,
procurávamos sempre aquele sinal sutil, vindo de qualquer um, mas geralmente de um membro da associação
de moradores: "Pode subir, tá limpo."
Pronto, subíamos, fazíamos o trabalho
e voltávamos seguros para as reda-
ções. Homens armados? Se não estivessem perturbando, eram paisagem.
A não-matéria.
O assassinato de Tim mudou tudo.
Em muitos encontros, reuniões e seminários, foi como se toda uma categoria despertasse ao mesmo tempo
para um erro de muitos anos: não há
nada de natural no tráfico, ele não deve ser nunca visto como paisagem e
jamais se deve aceitar o consentimento do tráfico, mesmo que sutil,
mesmo que dado de forma velada, indireta, para que façamos o nosso trabalho. Os traficantes estão ali indevidamente e é nosso papel mantê-los
sempre nessa condição de estranhos,
de usurpadores.
A questão é delicada, porque o trabalho jornalístico em comunidades carentes se tornou muito mais complicado, muito mais difícil. Se deixaram de
ser paisagem, se não há consentimentos sutis, o risco é sempre maior. Este é
o maior desafio do jornalismo brasileiro: continuar cobrindo o que acontece
nas comunidades carentes, porque
não fazê-lo é criar zonas de exclusão,
num ambiente dominado por um inimigo declarado. Um retrospecto do
nosso trabalho, nestes últimos três
anos, mostra que temos conseguido.
Com muitas, imensas dificuldades, é
verdade. Mas com êxito.
Os menos otimistas estavam certos
de que essa mudança de atitude seria
efêmera. Não foi. Três anos depois, a
postura de nós, jornalistas, não mudou
um milímetro. Devemos isso ao Tim,
um colega de quem não consigo falar
sem me emocionar profundamente.
Tim era especial: reunia ao mesmo
tempo exuberância profissional e simplicidade no trato com os colegas, dedicação total ao trabalho e um espírito
leve e brincalhão, vocação enorme para o furo, para a grande reportagem, e
a disposição para trabalhar também
nas tarefas mais rotineiras. Tim será
sempre uma referência porque representava o que de melhor um profissional pode ser. Em tempos em que o estrelismo é tão freqüente, ele tinha a
consciência de que a reportagem é
sempre mais importante que o repórter. Sua morte, eu digo sempre, transformou-o num mártir. Algumas pessoas não gostam dessa palavra, mas
ela é exata. E justa. Tim é um mártir do
jornalismo brasileiro.
O martírio de Tim provocou em
nós essa mudança. Temo, porém, que
ela custe muito a chegar a outros setores da sociedade. Submetidos à
equação cruel de que o trabalho social, cultural e comunitário em áreas
dominadas pelo tráfico não pode ser
levado adiante em confronto aberto
com o tráfico, muitos continuam
agindo como os jornalistas agíamos
antes: vendo o tráfico ora como aberração, ora como paisagem.
Este é um nó que eu não sei como
desatar. Mas, no meu íntimo, eu tenho uma certeza: se encarado como
paisagem, é como paisagem que o
tráfico se perpetuará.