Recém-saído da Semana da Consciência Negra, desembarquei
em Londres em meio a mais um
round na polêmica travada por
Ken Livingstone, prefeito da cidade, e Trevor Phillips, presidente da Comissão para
Igualdade Racial, que se despedia do cargo depois de quatro anos. Em comemoração aos 30 anos de criação da comissão, uma grande conferência se realizou
no fim de novembro, e Livingstone se recusou a fazer parte dela. Esquerdista com
inequívoco currículo de apoio às minorias, mas capaz de ofender um repórter
judeu e não se desculpar por isso, Livingstone está há tempos contrariado
com o que vem dizendo Phillips. E o que
diz Phillips? Simplesmente que o Reino
Unido, a despeito de todos os avanços
contra o racismo, está se tornando cada
vez mais uma nação etnicamente segregada. "A desigualdade está sendo aumentada por vivermos separados", disse.
O "Daily Telegraph" resumiu bem a
questão num editorial: "Infelizmente, por
muitos anos a Comissão para Igualdade
Racial foi também o veículo para a doutrina do multiculturalismo que minou o aracialismo que devia encorajar. 'Celebrar
a diversidade' se tornou uma desculpa
para a criação de guetos étnicos e religiosos." Uma pesquisa divulgada durante a
conferência mostrou que a despeito do
grande número de minorias no Reino Unido (só em Londres, existem 42 comunidades étnicas com mais de 10 mil pessoas),
poucos se misturam.
E nós, brasileiros, que já somos uma mistura, vemos uma legião de
ativistas querendo nos transformar
numa nação bicolor. Estamos querendo caminhar para trás.
Phillips não é um derrotista. Em seu
discurso, enfatizou os avanços que o Reino Unido alcançou e chegou a dizer que a
Grã-Bretanha é hoje o melhor lugar na Europa para, na definição dele, um "nãobranco" viver. A pesquisa que mencionei
mostrou que 25% dos britânicos desejariam viver em bairros apenas de brancos,
um número ainda alto, mas menor do que
o encontrado em outros países: 44%, na
Grécia; 42%, na Bélgica; 39%, em Portugal;
e 37%, na Dinamarca. No Reino Unido há
violência policial contra minorias, mas
em menor escala do que em outros países
ou em outras épocas. Nos últimos cinco
anos também caiu a proporção daqueles
que se importariam se um parente próximo se casasse com alguém de cor: eram
32%, hoje são apenas 12%.
Apesar dos avanços, os perigos são
grandes. A pesquisa quis saber dos entrevistados se no ano anterior tinham recebido em suas casas pessoas de outras etnias: 70% disseram que isso dificilmente
aconteceu. Não há mistura, não há troca.
Phillips denunciou o fato de que, apesar
do discurso em contrário, mais e mais a
classe média branca se afasta das áreas
com concentração de imigrantes e negros, tornando-as ainda mais concentradas. É o racismo travestido de excessivo
respeito às diferenças, é o multiculturalismo levando à "guetização". E a intolerância tende a crescer: 61% dos brancos britânicos reclamam que há imigrantes em
excesso, mas 54% dos imigrantes já estabelecidos fazem a mesma reclamação.
Meu pirão primeiro.
O impressionante é que pela primeira
vez mais da metade de todos os membros de minorias étnicas já nasceram no
Reino Unido, não sendo imigrantes, portanto. São como eu. A diferença é que, no
Brasil, eu virei um brasileiro igual a você,
leitor, sem que nada marque, para consumo externo, a minha ascendência senão
o meu nome. Lá, eu seria britânico como
todos, mas, provavelmente, moraria num
bairro árabe, usaria roupas étnicas, teria
amigos preponderantemente árabes e
me identificaria mais com a Síria do que
com o Reino Unido. E teria ódio dos 100%
britânicos. Vi num restaurante marroquino um garçom brasileiro ser destratado
por um supervisor marroquino. O brasileiro me explicou: "É o racismo. Os donos
do restaurante, franceses, destratam todos nós. Os marroquinos destratam brasileiros, lituanos, húngaros. Estes também se destratam mutuamente e a mim
também. É cada um por si."
Depois de 30 anos, as políticas anti-racistas tradicionais, as únicas advogadas
por políticos como Ken Livingstone, trouxeram tolerância formal, mas não mistura, como deseja Trevor Phillips. Nós já temos mistura, mas alguns de nós preferem
enaltecer a diferença, exaltar as raças na
suposição de que, assim, combaterão o
racismo. Para isso, fazem o que nunca fizemos, vendo racismo em toda parte e
imitando americanos e europeus: todo
mundo que não é branco é negro. É curioso o processo: quando olham os números, dizem que os pardos, mais claros ou
mais escuros, são negros. Assim nos tornamos a maior nação negra do mundo depois da Nigéria, mesmo os pretos, na classificação do IBGE, sendo 6% da população, os pardos 42% e os brancos 52%.
Mas, quando olham a realidade, classificam os pardos de brancos. Só assim são
capazes de afirmar que não há negros como garçons em restaurantes ou como
vendedores em lojas de shopping, ou como consumidores nos dois lugares. Se os
pardos são contados como negros, todos
esses lugares estão cheios de negros, não
há como negar. Mas é como me disse um
amigo outro dia, numa metáfora que envolve artes gráficas: para alguns, pardo
em ambiente de rico "imprime" branco;
em ambiente de pobre, "imprime" negro.
Eu chamo isso de racismo.
Devemos sempre afirmar que não somos diferentes. O racismo deve ser
combatido energicamente, mas reforçando a verdade de que somos todos
iguais, rechaçando a idéia de raça, enfatizando as semelhanças. Não se percebe que ao exaltar a diferença acabase por permitir que alguns aloprados
comecem a dizer quem é melhor e
quem é pior. Não devemos cair nessa
fixação de ver cor onde só há gente.
Infelizmente, quase todos os jornais,
na Semana da Consciência Negra, pareciam ávidos por denunciar um racismo
que não é nosso. Continuaram a ler estatísticas que mostram a desigualdade
entre brancos e negros, e é decorrente
da pobreza, atribuindo-a ao racismo,
mesmo sabendo que os números não
permitem esse passo.