"Entreatos", filme de João
Salles sobre os bastidores da campanha de Lula, pode dar ao espectador a impressão de que capta os flagrantes de Lula como se a câmera
fosse invisível. O cineasta já reconheceu que não é isso: como a câmera é ostensiva, o então candidato
mede o que fala, por mais improvisado que pareça o discurso. É, assim, ainda mais revelador um dos
trechos do filme. Lula conversa sobre as estatísticas no Brasil com Gilberto Carvalho, seu assessor de
campanha e, hoje, secretário particular. Lula diz: "Eu lembro que fui a
Paris e falei: 'O Brasil tem 25 milhões
de crianças de rua'." Voltando-se para Gilberto, demonstra incredulidade: "Isso é uma Argentina! Não existe
isso!" Ele continua: "Frei Betto um
dia foi na igreja e disse que cinco milhões de pessoas morrem de aborto
por ano. Não é possível, rapaz!" E
pergunta: "Quantas pessoas passam
fome neste país, Gilberto? Eu acho o
número de 53 milhões tão absurdo!"
Lula conclui, conformado: "Mas os
números são do IBGE."
Taí o problema! Os números não
são do IBGE: censo e PNAD não dizem quem passa fome. O que o IBGE
registra é a renda dos brasileiros.
Com base nela, pesquisadores tentam inferir quantos brasileiros são famintos. O resultado dependerá do
método utilizado, e há muitos, como
mostrou O GLOBO, domingo. Há
quem se fixe apenas num corte de
renda, estabelecendo meio salário
mínimo de renda per capita como limite da pobreza, por exemplo. Há
pesquisadores que se baseiam no nú-
mero de calorias que consideram necessárias para manter um indivíduo
vivo e o preço da cesta de alimentos
capaz de gerar essas calorias. A necessidade calórica pode ser de 2.100,
segundo a FAO, 2.288, segundo a OMS
ou 1.800 segundo muitos especialistas. A determinação da cesta não é
simples: ela pode ser regional ou nacional, pode conter os alimentos
mais baratos ou aqueles que a cultura local gosta de consumir.
Isso explica a infinidade de números. Os indigentes seriam 47 milhões,
para um pesquisador da FGV; 25 milhões, para um pesquisador do Ipea;
ou 17 milhões, para o Banco Mundial.
Os pobres seriam 58 milhões, segundo o pesquisador do Ipea, 61 milhões
segundo outra pesquisadora da FGV
ou 46 milhões segundo o Banco Mundial. Todos podem estar errados. O
governo adotou o critério de renda,
R$100, o equivalente a meio salário
mínimo até abril de 2003. Com esta
renda, havia 53 milhões de pessoas,
o tal número a que se referia Lula, já
defasado. Esta passou a ser a meta
ambiciosa do programa para pôr fim
à fome.
Tão ambiciosa que parece inadministrável: o Bolsa Família continua foco de más notícias. Semana
passada, a Controladoria Geral da
União divulgou as auditorias nas
três cidades retratadas em reportagem do "Fantástico", da TV Globo:
Cáceres, Piraquara e Pedreiras. Lula deveria ler as 65 páginas dos três
relatórios. Em Cáceres, os auditores analisaram um grupo de 125 beneficiários de programas sociais.
Destes, apenas 52% foram encontrados, 20% não tiveram suas casas
localizadas, 16% não estavam no
domicílio para ser entrevistados e
12% estavam irregulares (ou eram
inelegíveis ou estavam inscritos em
mais de um programa). Em Piraquara, dos 102 pesquisados, apenas
56% estavam regulares, 25% não foram localizados e 19% estavam irregulares. Em Pedreira, o auditor não
informou o número de famílias visitadas. Mas um dado diz muito: de
123 pessoas que retiraram os cartões de pagamento da agência da
Caixa, o gerente só tinha os termos
de responsabilidade assinados por
onze delas.
No relatório de Cáceres, para citar apenas um, critica-se a forma de
cadastramento. Um dos maiores objetivos do Bolsa Família é levar as
crianças às salas de aula, mas o cadastramento foi feito nas escolas entre os alunos já matriculados. "Isso
significou que aquelas famílias em
situação de extrema pobreza e vulnerabilidade, cujos filhos não estavam na escola, deixaram de ser cadastradas. De acordo com os dados
de 2000, cerca de 7% das crianças
entre 7 e 15 anos não estudavam",
diz o auditor. Quanto ao número dos
que recebem sem merecer, o auditor
culpa a falta de verificação in loco
do que dizem os beneficiários: "O
cadastro é feito com base apenas
em declarações do beneficiário. Esse procedimento fragiliza a consistência dos dados cadastrais."
Todo o problema reside em confundir pobreza com fome. Talvez
fosse a hora de Lula confiar menos
nos economistas e mais nos nutricionistas para determinar quem é
faminto .
Em vez de procurar definir mais
uma linha de pobreza, ou qual a mais
próxima da realidade, o governo deveria esperar os resultados do capítulo de nutrição da Pesquisa de Or-
çamento Familiar, que o IBGE está
prestes a divulgar. Será a primeira
pesquisa que revelará realmente
quantos famintos o país tem. Financiado pelo governo Lula, o IBGE mediu peso e altura de uma parcela estatisticamente representativa de todos os brasileiros. Assim, saberemos
em breve a população de emagrecidos, aqueles que realmente passam
fome, um número que alguns nutricionistas estimam, no máximo, entre
dez e quinze milhões.
O presidente devia seguir a intuição do candidato, ter a coragem de
assumir de público que o Brasil não
tem 53 milhões de famintos e interromper o cadastramento para reavaliação até que saiam os números da
nova pesquisa. Se Lula fizer isso, em
vez de estar gastando quase R$ 9 bi
ao ano ao fim de seu governo para
beneficiar 53 milhões de brasileiros
supostamente famintos, gastaria no
máximo R$ 2,5 bi com os que realmente passam fome. Com o troco,
poderia dobrar a verba que o MEC
tem para seus projetos. Seria um legado inestimável de Lula: ter dado
um passo essencial para acabar com
a fome de comida e a fome de saber.