Tão logo estourou a denúncia
de compra de apoio de partidos, a necessidade de reformar o nosso sistema eleitoral tomou corpo. Eu mesmo esbocei essa tese, mas depois me dei conta de que esse tipo de diagnóstico é
parte de nossa doença. É como se
disséssemos para nós mesmos: ou se
arruma um jeito de dar maioria aos
governos ou eles vão ter de continuar comprando deputados.
Isso dá vergonha.
Certamente o nosso sistema está
longe do ideal, mas uma pesquisa sobre o tema mostrará que não existe
perfeição: em todos os países, com processos eleitorais diversos, há críticas
pesadas quanto ao modelo adotado. O
que, no entanto, falta aqui e não falta lá
fora é o respeito à lei, seja ela vista como boa ou má. Nas nações desenvolvidas, burlar a lei dá cadeia; aqui, burlá-
la é o caminho natural para quem acha
que ela não é boa.
O nosso sistema eleitoral é muito
criticado, entre outras coisas, porque
daria origem a partidos amorfos, como PMDB, PP, PTB, PFL e PL. Eu penso diferente. Tais partidos são reflexo
legítimo de uma parte do Brasil, assim como o PT, o PSDB, o PPS etc., e
contribuem para o equilíbrio necessário num país ainda sujeito a eleger
presidentes ao sabor de emoções do
momento. Partidos assim acabam
sendo o colchão que evita que o país
embarque em aventuras sem volta.
Recordemos Collor. Imagine que
nosso sistema eleitoral fosse de tal
ordem que a Collor tivesse sido possível fazer do PRN, um partido de
aluguel, a maioria esmagadora do
Congresso. Não sei o que teria sobrado do país. Tivemos de enfrentar
o confisco da poupança, mas o estrago poderia ter sido ainda maior
se Collor não precisasse compor
com outros partidos. Em 2002, se o
PT tivesse obtido a maioria absoluta, teria sido mais difícil barrar projetos que atentam contra as nossas
liberdades fundamentais. Refiro-me
ao Conselho Federal de Jornalismo,
à Ancinav e à reforma universitária
stalinista, por exemplo.
O nosso povo tem mostrado grande
sabedoria: ao mesmo tempo em que é
tentado a apostar em grandes mudanças
— como Collor e Lula — faz uma espécie
de headge, elegendo democrática e legitimamente um parlamento com mais
meios-tons. Isso não é um defeito do nosso sistema, mas uma virtude. Diante das
denúncias, todos sonham com mudanças
que dêem aos governos maiorias folgadas
sem a necessidade de comprá-las, como
se só existisse essa opção. O governo,
agora, é o maior entusiasta.
A Venezuela viu filme parecido.
Chávez se elegeu com um Congresso
oposicionista, eleito apenas um mês
antes nos moldes que agora queremos adotar: listas fechadas, com o
eleitor votando não em nomes, mas
em partidos. Graças à omissão de um
judiciário medroso, Chávez convocou uma Constituinte com regras
eleitorais completamente novas: a
eleição deixou de ser proporcional
com listas fechadas e passou a ser
majoritária, com o eleitor proibido de
votar em partidos, mas apenas em
nomes. O resultado? Chávez conseguiu uma enorme maioria, e abriu caminho para mudar a Venezuela, levando o país a uma tensão política
sem precedentes.
O caso venezuelano mostra que
não é este ou aquele sistema eleitoral
que torna possível a formação de
maiorias. Aqui, para alcançá-las, querem adotar a eleição proporcional
com lista fechada; lá, Chávez acusava
exatamente esse sistema de ser o empecilho para a formação de maiorias,
o que o fez adotar, depois da Constituinte, o sistema distrital misto.
Creio que não é um novo sistema em
si que favoreça o surgimento de
maiorias, mas a desorientação que
mudanças bruscas nas regras provocam. Desorientada, parte do eleitorado fica em casa, e o eleitor mais próximo do líder do momento aparece
em maior número para votar. A abstenção na Venezuela mostra isso.
Mudar abruptamente o nosso sistema de listas abertas para um sistema
de listas fechadas pode desorientar o
eleitor. Nosso sistema é um dos mais
democráticos: o eleitor pode votar
em nomes ou, se preferir, no partido.
Tem preferido votar em nomes. Mas,
com exceção de 1994, o PT tem sido
sempre o partido com maior porcentagem de votos na legenda: 14,6% em
2002, contra 9,4%, do PSDB; 5,7%, do
PFL; e 6,1%, do PMDB. Fácil imaginar
quem seria o maior beneficiário de
um sistema de listas fechadas.
Com isso não quero dizer que nosso
sistema não careça de melhoras. As
mais importantes são o estabelecimento de um bom grau de fidelidade partidária e de cláusulas de barreira que
impeçam a existência, em nível nacional, de partidos com importância apenas local. Mais importante do que mudar as leis, no entanto, é fazê-las valer.
Querem, por exemplo, instituir o financiamento público de campanhas
com o argumento de que ele inibiria o
caixa dois: sabendo-se de antemão
quanto cada partido levará, se alguma
campanha tomar uma feição milionária, isso será um indício de irregularidade. Não creio. Haverá toda sorte de
brechas: se uma produtora de TV custar "x" reais a preço de mercado, haverá partidos que vão declarar que,
por amor à causa, certa produtora cobrou vinte vezes menos. E o mesmo
acontecerá em relação a camisetas,
aluguel de jatinhos, santinhos etc. Hoje, a lei já permite um grande controle,
pois os partidos têm de declarar quanto arrecadam. Bastaria que se comparassem os sinais aparentes de riqueza
de uma campanha com o que foi declarado para que se flagrassem as irregularidades. Isso nunca é feito.
O problema aqui é este: as leis não
são respeitadas. Diante das câmeras
de televisão, Roberto Jefferson confessou como agiu contornando a lei ao
receber ilegalmente do PT R$ 4 milhões e ao admitir que instruiu seus
partidários com cargos no governo a
extorquir dinheiro de fornecedores do
Estado traficando influência. Em outro
país, acabaria preso; aqui será apenas
cassado. Mas ele não liga, pois tem dito que "já sublimou" o mandato.
Não precisamos de um sistema eleitoral radicalmente novo. Precisamos
de pequenos ajustes. Precisamos punir quem não cumpre a lei.