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uando o filme acabou, a platéia se levantou e aplaudiu.
Como se pode enganar tanta
gente assim, sem pudor, e
ainda ganhar o prêmio principal de Cannes? Fahrenheit 9/11, de
Michael Moore, que chamam de documentário, deveria receber outra qualificação. É um amontoado de mentiras
e distorções, a serviço de uma teoria
que o pior dos roteiristas rejeitaria:
Bush, um idiota, é de uma família gananciosa, sustentada pelos sauditas, e,
depois de tomar o poder com uma
fraude, levou o país à guerra com o Iraque, que até então vivia pacificamente,
apenas para que a indústria bélica à
qual é ligado lucrasse mais.
O terror está a um passo de ganhar a
guerra, pensei. Mas logo me tranqüilizei
ao me lembrar de John Kerry se apresentando para o serviço, pateticamente
batendo continência: "Não hesitarei em
usar a força e não concederei a nenhuma nação ou organização internacional
o poder de veto quando o assunto for a
segurança dos EUA." Exatamente o que
Bush fez: tentou o apoio internacional,
não conseguiu, e foi à guerra, com o
apoio do Congresso. Fico tranqüilo de
saber que, com um ou o outro, terá continuidade a luta contra o terror islâmico, a pior ameaça que o mundo enfrenta desde o nazi-fascismo.
Aqui vou mostrar algumas mentiras
do filme (há muitas outras). Uma pesquisa na imprensa americana e na internet ajudou muito. Principalmente, as informações coletadas por Dave Kopel,
do partido democrata, mas eleitor de
Ralph Nader, como Moore. Kopel é diretor de pesquisas do conservador Independence Institute. Conhece os desvios de Moore desde "Tiros em Columbine", porque, infelizmente, tem o defeito de defender o direito ao porte de armas. Os dados a seguir, vindos de mim,
da imprensa ou de Kopel, foram checados nas fontes originais.
• O primeiro resultado que a Fox deu
sobre a Flórida foi pró-Gore, e não pró-
Bush, como diz o filme. A Fox manteve
esse prognóstico por seis horas até as
duas da manhã, quando se retratou,
dando a vitória a Bush. Mas, duas horas
depois, pôs a eleição como indefinida.
• A recontagem de votos feita por
jornais não deu a vitória a Gore, "em todos os cenários". Se a recontagem fosse
feita apenas onde Gore a solicitou, a vitória seria de Bush. Se a recontagem
fosse geral — o que Gore jamais solicitou — a vitória iria para Gore, se alguns
critérios fossem seguidos, e para Bush,
se os critérios fossem outros. Se Gore
tivesse sido eleito, as mesmas suspeitas de fraude pesariam contra ele.
• Bush aparece num jantar de gala,
dizendo: "Alguns os chamam de 'a elite'. Eu os chamo de 'a minha base'." Era
o jantar anual da Al Smith Foundation,
que recolhe fundos para hospitais,
quando o convidado deve debochar de
si mesmo. Gore, também convidado, fez
o mesmo, mas Moore omite.
• O filme diz que Bush passou 42%
dos seus primeiros oito meses em fé-
rias, segundo o "Washington Post". O levantamento incluía os fins de semana
de trabalho em Camp David. Ninguém
nota, mas numa das cenas, ao lado de
Bush, está Tony Blair. Tirando os fins de
semana, o tempo cai para 13%.
• O filme diz que, em agosto de 2001,
Bush recebeu informe do FBI dizendo
que "Osama bin Laden estava planejando atacar os EUA com aviões seqüestrados". "Bush pode ter achado o título
vago", diz Moore, que corta a cena para
Condoleezza Rice, revelando o título:
"Bin Laden decidido a atacar dentro
dos EUA." Engraçado, mas Moore omitiu o conteúdo do informe, uma colagem de informações de 97 e 98. A parte
sobre aviões seqüestrados é o oposto
do que o filme sugere: "Não fomos capazes de confirmar algumas das mais
sensacionais ameaças como uma que
nos chegou (...) em 98 dizendo que Bin
Laden queria seqüestrar um avião para
obter a libertação do sheik cego Umar
Abd al Rahman e outros extremistas
presos nos EUA."
• Na cena em que Bush passa sete
minutos sem nada fazer após o ataque,
na escolinha da Flórida, o filme diz que
ele ficou lendo um livro chamado "Meu
bode de estimação". Uma graça, mas o
livro na verdade se chama "Domínio da
leitura 2" ("Meu bode" é apenas um
exercício do livro).
• O filme diz que 142 sauditas, incluindo 26 membros da família Bin Laden, foram autorizados a deixar o
país, depois de 13 de setembro, quando o espaço aéreo estava fechado, gra-
ças à autorização de Bush. Ninguém
teria sido interrogado. A verdade: Richard Clarke, então diretor de contraterrorismo e endeusado por Moore
por ter se tornado um crítico de Bush,
assumiu inteira responsabilidade pelo
ato e garantiu que não pediu a autorização do presidente. A comissão do
11 de Setembro confirmou isso e atestou que todos os procedimentos legais foram observados, com o FBI interrogando a maioria. Basta ler as pá-
ginas 329 e 330 do relatório final.
• O filme "denuncia" que o serviço
secreto protege a embaixada da Arábia
Saudita, mas uma de suas missões é
exatamente proteger as missões diplomáticas em Washington.
• O filme insinua que Bush recebeu
delegados do Talibã, quando governador do Texas. É mentira. Eles visitaram
a empresa Unocal para conhecer um
projeto de gasoduto, apoiado por Clinton, deixado de lado em 98, e jamais retomado. A afirmação de que Hamid Karzai, presidente do Afeganistão, foi consultor da Unocal é mentirosa.
• O filme diz que os Bush teriam se
beneficiado de US$ 1,4 bi que os sauditas investiram na empresa Carlyle,
de onde o ex-presidente Bush é consultor. E afirma que os Bin Laden também
seriam investidores da empresa. A verdade: Bush só se tornou consultor da
Carlyle anos depois do fabuloso investimento saudita. Os Bin Laden investiram apenas US$ 2 milhões na Carlyle,
um nada perto da fortuna deles. Fora
isso, o super anti-Bush, George Soros,
também é um investidor da Carlyle, assim como muitos ex-assessores de expresidentes democratas são ligados a
ela. O filme diz que a Carlyle ganhou
milhões com a guerra do Iraque, mas
ela teve prejuízo: a única arma desenhada para o Exército, mas não comprada pelo governo Bush, foi o Cruzado, um sistema de mísseis que custou
à empresa US$ 11 bi. O ex-presidente
Bush deixou há tempos de ser consultor da empresa.
• O filme diz que Bush deu um mês a
Bin Laden, pois não atacou o Afeganistão imediatamente. Moore deixa de contar que Bush passou um mês tentando
obter o aval da ONU. Cobravam-lhe a
"prova cabal" do envolvimento de Bin
Laden, que, numa entrevista, dissera
que não era o autor dos ataques, embora os aplaudisse. Moore, na ocasião, disse que, sem provas, Bin Laden tinha de
ser visto como inocente. A invasão seria
uma atrocidade, opinou. Poucos lembram, mas Bush invadiu o Afeganistão
sem autorização da ONU. Só foi "perdoado" porque fitas de vídeo achadas
em Cabul se tornaram a prova cabal.
• O filme diz que o Iraque jamais
ameaçou os EUA ou assassinou americanos. Mas Saddam sempre acolheu
terroristas como Abu Nidal, que matou
americanos, sempre premiou com US$
15 mil as famílias dos homens-bombas
palestinos, que mataram judeus americanos, e sempre, em discursos e entrevistas, fez ameaças espalhafatosas aos
EUA. Após o 11 de Setembro, Saddam
declarou que o ataque era o começo da
grande revanche.
• O número de congressistas com filhos no Exército — apenas um — está
errado, são sete, dois no Iraque, um nú-
mero baixo, mas para que mentir?
O filme é esse lixo. Nossa imprensa, sem revelar as mentiras, foi mais
ou menos unânime: "brilhante, mas
faccioso", "histórico, mas tendencioso", "bem pesquisado, mas panfletá-
rio". Para mim, a adversativa não é
um pequeno problema. Porque não
se pode compactuar com a mentira e
a empulhação. Sobretudo quando
não é necessário mentir para ser antiBush ou antiguerra. O filme desmerece os pacifistas que o aplaudem. E
que continuarão a aplaudi-lo, a despeito de tudo. Porque vivemos tempos em que muita gente está cega e
surda. Não quer ouvir nem ver a
ameaça que nos cerca.
PS: se o leitor quiser mais pontos e detalhes
dos que expus aqui, consulte www.oglobo.com.br/mundo.