Em 1989, o então candidato
Luiz Inácio Lula da Silva teve
uma experiência traumática
em Juazeiro do Norte, Ceará,
centro de romaria dos devotos de
Padre Cícero: seu carro foi apedrejado, aos gritos de "comunista". Foi a
única cidade em que algo assim
aconteceu. Semana passada, estive
a trabalho em Juazeiro do Norte e
em Petrolina, Pernambuco, e posso
testemunhar: hoje, é Lula na terra e
o Padre Cícero no céu. O que mudou
nesses 17 anos?
Meus propósitos eram outros,
mas o tema "Bolsa Família" estava
ali em toda parte, e três histórias me
caíram no colo.
Um motorista de Petrolina se disse
mecânico formado, empregado como
tal, mas naqueles dias fazendo um bico, ao dirigir para a empresa em que
trabalhava. Era o menos afortunado
de quatro irmãos: uma irmã era dentista, uma irmã, advogada, e um irmão, engenheiro. Todos empregados. A mãe dos quatro recebe o Bolsa
Família e está feliz da vida.
Em Juazeiro, fui atendido por outro motorista, também fazendo um
bico, porque trabalhava até pouco
tempo como motorista de uma empresa de ônibus: foi demitido, mas já
está encaminhado para começar em
outra empresa. O pai dele tem 63
anos e é aposentado desde os 47,
porque, também motorista de ônibus, pôde se aposentar com 25 anos
de serviço. O irmão trabalha por conta própria, instalando e consertando
antenas parabólicas. A mulher desse
irmão trabalha em Petrolina na lavoura de frutas durante cinco meses
do ano e, no restante do tempo, é revendedora de produtos de beleza.
Ela está entre as beneficiárias do Bolsa Família.
Também em Juazeiro, encontrei
uma senhora que dirige uma van para romeiros. O carro pertence à mãe
dela: "Eu só ganho comissão", explica, acrescentando que tira uns dois
salários mínimos por mês. O marido
dela é representante comercial de
uma fábrica de produtos de alumínio
e recebe um pouco menos: um salário mínimo e meio. O pai dele tem
uma barraca na feira da cidade. A
mãe recebe o Bolsa Família.
São todos pobres, mas estão longe
do que deveria ser o público-alvo do
Bolsa Família. Nos três relatos, as famílias não necessitam de ajuda do
Estado: todas têm meios de compensar alguma necessidade de seus
membros, se necessidade existir. Haverá quem diga que escrevo com base em apenas três testemunhos, mas
não é fato. Os relatos corroboram o
que já disse aqui com base na última
PNAD. Levando em conta todos os
que recebem o Bolsa Família, 37,6%
tinham em 2004 renda per capita superior a R$ 100, o teto então exigido
pela lei. A imprensa mostra isso: em
qualquer cidade é muito fácil encontrar beneficiários do Bolsa Família fora do público-alvo.
O presidente Lula disse numa entrevista que erros, num programa
com a dimensão do Bolsa Família, são
naturais, e muitos pesquisadores
concordam. Eu acho o índice muito
elevado. O presidente diz também
que o importante é matar a fome dos
brasileiros. Mas programa não mata a
fome de ninguém, porque a fome no
Brasil já deixou de ser um problema.
Segundo a Pesquisa de Orçamento
Familiar, do IBGE, que mediu e pesou
os brasileiros, apenas 4% de nós estão emagrecidos, índice considerado
normal pela OMS, porque até 5% dos
indivíduos de qualquer grupo são geneticamente magros. Em apenas algumas poucas regiões, o índice é próximo de 7%, o que nos leva a contar os
famintos aos milhares, nunca aos milhões. Para comparar, no Haiti este
número é de 20%, na Etiópia, 40%, e
na Índia, 50%. Nossos números permitiriam que o dinheiro do Bolsa Família fosse dramaticamente reduzido,
para atender apenas àqueles que de
fato necessitam. O resto seria aplicado em educação, único instrumento
que redime as pessoas da pobreza.
Mas o governo insiste em manter a
largueza do programa e se orgulha
de, hoje, beneficiar 11,1 milhões de
famílias. No Nordeste, 5,5 milhões de
famílias são beneficiárias do programa, um número 49% maior do que no
ano passado. 40% das famílias de Petrolina e 31,4% das famílias de Juazeiro recebem o dinheiro. O impacto
eleitoral disso é evidente.
Se fôssemos um país amadurecido,
o Bolsa Família seria percebido como
uma política de Estado, criada por
um governo, aperfeiçoada ou piorada (dependendo do ponto de vista)
por outro e aprovada pela maioria
dos congressistas. Algo como a vacinação obrigatória, a educação gratuita, as aposentadorias do INSS, o décimo terceiro salário, o auxílio-desemprego. Não seria jamais visto como um favor, uma bondade ou um
presente deste ou daquele governante. Como está, será sempre possível
levantar a suspeita, por mais leviana
que seja, de que a concessão do benefício em dinheiro visa a uma recompensa eleitoral futura.
O certo é que a virada de Juazeiro
não foi milagre.
PS: Em artigo sobre o meu livro
"Não somos racistas", recentemente
lançado, Nei Lopes atribuiu a mim,
entre aspas, uma frase que eu não
disse, acusou-me de chamar, "derrogatoriamente", os negros de pele
mais clara de pardos, disse que empreendo uma "cruzada" contra as cotas e afirmou que volto ao passado
obscurantista.
A frase "Os negros usam os pardos
para engordar os números da miséria, mas depois se afastam dos benefícios" jamais foi dita por mim, e,
aliás, não faz sentido: os negros se
afastam? O que eu disse é que os pardos são contados para engrossar as
estatísticas sobre os negros, mas, depois, são impedidos de se beneficiar
das cotas, o que é uma realidade em
muitas universidades, que exigem fotos para descartar os vestibulandos
de pele mais clara.
Não sou eu que uso a expressão
"pardos", mas o IBGE em suas estatísticas oficiais.
Um brasileiro de origem muçulmana muito dificilmente empreenderia
cruzadas.
E, por fim, não apelo ao passado
obscurantista. Quem embaralha a
História para justificar políticas de
preferência racial é ele.
Enfim, ou Nei Lopes não leu o meu
livro ou deliberadamente decidiu
distorcer minhas palavras. Quem ler
o livro saberá de que lado está a verd a d e .