A
eleição de Obama teve
muitos efeitos positivos, e
aplaudo todos eles. Mas,
para mim, o maior de todos foi fazer os racialistas brasileiros refletirem sobre o que propõem
para a sociedade brasileira. Não
houve recuos, infelizmente, mas o
tom geral nas entrevistas que li,
nos artigos publicados em jornais
de todo o país e nos inúmeros emails de leitores que recebi foi
aquele que se usa quando se está
tentando se explicar, se justificar,
se fazer entender, afastar de si possíveis mal-entendidos. Um avanço
e tanto, num país em que os racialistas se achavam os donos de todas as virtudes e faziam recair sobre nós um mar de acusações infundadas, nós que queremos ver os
homens ignorando-lhes a cor: diziam que queríamos a manutenção
do status quo, que éramos contrá-
rios à promoção dos negros, contrários a políticas afirmativas porque gostaríamos de manter privilé-
gios, coisas horríveis assim. Pois
quando Barack Obama fez o seu
discurso da vitória e ignorou solenemente o fato de ser o primeiro
presidente negro dos EUA, alguma
coisa aconteceu no coração dos racialistas. Se a visão pós-racial de
Barack Obama fosse apenas uma
estratégia eleitoral, como muitos
acreditavam, por que motivo então, depois de eleito, ele não celebrou o feito histórico? Afinal, seria
algo que (quase) todos veriam como justo e natural. Ele não celebrou o fato porque sua visão pósracial não era estratégia eleitoral
em primeiro lugar; era crença.
Crença no sonho de Martin Luther King de que todos nós sejamos
julgados pelo nosso caráter e não
pela nossa cor. Obama foi coerente
com esse sonho, do início ao fim,
agiu sempre, não como um negro
americano que postula a Casa
Branca, mas apenas como um americano. Coerência é isso.
Como conseqüência, aqui, os
muitos que viam na divisão de nossa nação entre negros e brancos a
panacéia para superação das desigualdades foram surpreendidos
em pleno vôo. Dão como modelo os
EUA e, agora, surge lá um líder capaz de reunir multidões, com uma
visão pós-"racial", que ignora "ra-
ça"? Como é que pode?
Li muito do que se escreveu e se
falou do assunto, e, como disse,
gostei do tom, embora admita que
nem de longe tenha havido recuos.
A tônica geral era que a visão pósracial é a correta, mas, no Brasil,
para se atingi-la, é preciso antes
aprofundar as divisões. É, sem dú-
vida, um contra-senso, mas só a admissão de que o sonho é um mundo
onde cor não importa já é um grande avanço. Ponto para Obama.
Aqui e ali, porém, principalmente nas mensagens que recebi de leitores, algumas afirmações se baseavam em dados errados. Acho
importante esclarecer esses pontos.
Muitos disseram que Obama só
foi possível porque se beneficiou
de políticas afirmativas com base
em raça, políticas que eu condeno.
Esse argumento é muito recorrente, aqui e lá fora. Todos agora já admitem que ele é a favor de políticas
universalistas, mas muitos insistem em que ele foi um beneficiário
de políticas de preferência racial.
Não foi. Obama, publicamente, não
faz menção a isso, talvez porque,
se disser que não se beneficiou,
possa parecer que vê com críticas
aqueles que se beneficiaram, o que
não é o caso. Maureen Dowd publicou em uma de suas colunas no
"New York Times" que Obama sequer se disse negro quando se inscreveu para disputar uma vaga em
Harvard. Nunca foi desmentida, e
colegas de Obama na universidade
disseram o mesmo mais tarde. Sobre políticas afirmativas, Obama
disse, numa entrevista a uma emissora de televisão, que suas filhas
Malia e Sasha, no futuro, não deveriam se beneficiar de políticas afirmativas, porque têm todas as chances na vida e porque têm dinheiro
para arcar com os estudos. Ele
acha mais justo, e mais lógico, que
a ajuda vá para os pobres, mesmo
que sejam brancos. Já aqui...
Outra afirmação muito freqüente
é a de que Obama só foi possível lá
porque a luta pelos direitos civis foi vitoriosa, o que é uma verdade
cristalina. Mas a afirmação vem
quase sempre acompanhada de outra: esta luta ainda está para ser
travada aqui no Brasil. Não há nada
mais absurdo. Desde a República,
nunca houve segregação no Brasil
entre brancos e negros, nunca. Nada sequer parecido com as leis Jim
Crow, como ficou conhecida a legislação que impunha que brancos
e negros tivessem lugares separados em espaços públicos, escolas e
transportes (além de proibir os casamentos inter-"raciais"). Dizer
que aqui ainda é necessário lutar
pelos direitos civis dos negros é
distorção ou desconhecimento do
que sejam os direitos civis.
Há muito o que fazer no Brasil. Mas
o bonde da História aponta para que
não caiamos na tentação de dividir a
nação em negros e brancos. O que devemos fazer é apostar numa visão
pós-racial, que contemple o sonho de
Martin Luther King. O caminho para
superar as desigualdades são políticas de corte social, que tenham como
objetivo a melhora da vida dos pobres sem levar em conta a cor de ninguém. Fazendo isso, nosso país necessariamente será mais justo, mais igualitário.