Ontem, tentei mostrar
como a Irmandade
Muçulmana, criada
em 1928 por Hassan
Al-Banna, lançou as bases teóricas do terrorismo islâmico contemporâneo, ao estabelecer que
é obrigação de todo muçulmano
lutar, sem medo da morte, para
que o islamismo volte a um idealizado estado de pureza dos
tempos do Profeta. Com o slogan "a morte na luta por Deus é
a nossa grande esperança", o
objetivo do grupo era reviver o
califado, com a reunião de todas
as nações muçulmanas reconvertidas. Apesar da repulsa ao
Ocidente, a Irmandade acenava,
porém, até o fim da década de
1940, com uma espécie de compromisso. No manifesto "Na direção da luz", Al-Banna disse:
"As pessoas imaginam que a
nossa maneira muçulmana de
viver nos desconecta do Ocidente. E isso só serve para perturbar nossas relações políticas
com eles justamente agora que
estávamos para estabelecê-las.
Nada é mais fantasioso. Porque
os porta-vozes do Ocidente
sempre disseram que todas as
nações são livres para estabelecer seus próprios caminhos,
desde que não infrinjam os direitos dos outros." Mas tudo isso
iria mudar ainda na década de
50, com a aparição de Sayyid
Qutb, principal ideólogo da Irmandade depois do assassinato
de Al-Banna pelos agentes secretos do governo egípcio. Na
verdade é Qutb, e não Al-Banna,
quem é hoje o principal mentor
dos atuais terroristas.
A história de Sayyid Qutb é a
de um convertido. E a conversão ao radicalismo muçulmano
se deve em grande parte aos Estados Unidos. Egípcio como AlBanna, Qutb passou a juventude
entre a intelectualidade do Cairo, ambicionando uma carreira
de escritor. Embora sempre
muito religioso, demorou a ligarse à Irmandade. Formou-se em
educação e atuou como inspetor de escolas. Mais tarde, já trabalhando para o Ministério da
Educação, foi mandado, em
1948, para os EUA, a fim de se
inteirar dos métodos educacionais e dos currículos americanos. A idéia do governo egípcio
era abrir-lhe os horizontes, mas
o resultado foi trágico. Ele passou dois anos e meio nos EUA:
Nova York, Washington, Colorado e Califórnia. A experiência
certamente mudou a vida dele,
mas teve uma influência ainda
maior sobre as nossas. Já na viagem de navio, de Alexandria a
Nova York, ele enfrentou a situa-
ção mais embaraçosa de sua vida: à porta de sua cabine, uma
mulher seminua e bêbada tentou seduzi-lo. Ele não era nenhum garoto, tinha já 42 anos de
idade, mas o efeito daquele encontro o marcou para o resto de
seus dias (ele permaneceu solteiro até a morte). Sem nenhuma base na realidade, anos mais
tarde ele disse ao seu biógrafo
Abd al-Fattah Khalidi que a mulher seria uma agente americana, cuja missão era corrompê-lo.
John Calvert, professor de histó-
ria da Creighton University, em
Nebrasca, estudou a passagem
de Qutb pelos EUA em seu artigo "O mundo é um menino sem
modos: a experiência americana
de Sayyid Qutb" (o título é uma
referência a um curto ensaio de
mesmo nome que Qutb escreveu nos EUA, dizendo que o
mundo era um menino sem modos por ter ignorado os dons do
espírito que o Islã legou à Humanidade). O próprio Qutb escreveu artigos e cartas sobre sua
experiência americana, anos
mais tarde reunidos por seu bió-
grafo em um volume chamado
"América por dentro: através
dos olhos de Qutb".
Qutb ficou pouco tempo em
Nova York, mas o suficiente para
detestá-la, classificando-a como
uma grande oficina barulhenta e
estrepitosa. Os nova-iorquinos
tinham, segundo ele, a mesma
sorte dos pombos que infestavam a cidade, "condenados a viver uma vida sem graça, entre
engarrafamentos e os empurrões". Logo, ele estava em
Washington, no Wilson Teacher's College, da Columbia University, tentando melhorar o seu
inglês. Mas a repulsa por tudo o
que era americano só aumentou. Qutb desabafou em carta a
um amigo, segundo conta Calvert: "Eu preciso muito de alguém com quem possa conversar sobre outros assuntos, que
não apenas dinheiro, estrelas de
cinema e modelos de carro!" Na
mesma carta, ele disse que os
americanos eram totalmente desinteressados da dimensão espiritual da vida e tinham péssimo
gosto. Como prova da degenera-
ção americana, Qutb descreveu
um rapaz que estava a uma mesa de distância no mesmo restaurante que ele, cujo corpo era
marcado por enormes tatuagens
representando um elefante e um
leopardo. "Este é o gosto dos
americanos", disse, espantado.
Mas àquela altura, Qutb ainda
não tinha visto tudo. Ele se mudou pouco tempo depois para
Greeley, uma cidade do Colorado, onde foi continuar seus estudos de inglês. Já chocado com
o "american way
of life", Qutb só
tinha olhos para
ver degeneração
e vícios nas mais
singelas manifestações de vida.
Como numa divertida tarde durante uma festa
de igreja. Certo
dia, Qutb visitou
uma delas e viu casais dançando, à meia luz, na presença das
famílias e do pastor, que botava
na vitrola a música "Baby, it is
cold outside". Mais tarde, quando descreveu a cena, Qutb a pintou como a visão de um bacanal:
"A atmosfera era de sedução e a
música servia para criar um efeito romântico e onírico. A dança
intensificou-se, o salão fervilhava em pernas, braços enlaçavam
braços, lábios tocavam lábios,
peitos tocavam peitos, enfim,
uma atmosfera cheia de sedu-
ção." Até o hábito de dedicar o
fim de semana para aparar a grama era visto por Qutb como sintoma da preocupação americana com o externo, o material, o
fútil, e prova do egoísmo dos indivíduos. Detalhe: Greeley era
uma das cidades mais conservadoras do Colorado, fundada em
1870 como uma experiência utó-
pica de puritanos protestantes,
que cultivavam valores rígidos
(quando Qutb lá esteve, a venda
de álcool era proibida). Greeley
é conservadora até hoje, mas,
para os olhos de Qutb, ela era a
porta para o inferno.
Quando voltou para o Egito,
descreveu o que viu como o reino do pecado e da decadência:
para ele, as igrejas eram centro
de lazer e playground sexual, a
liberdade das mulheres era,
mais que excessiva, um desrespeito aos valores mais sagrados
de Deus, e os costumes, a vida
social e política dos ocidentais,
um atentado contra as leis divinas. Antes da visita aos EUA,
Qutb era religioso e conservador, certamente. Mas a experiência americana o transformou
num radical. Em 1951, aderiu à
Irmandade Muçulmana e passou
a ser o seu principal teórico. Em
pouco tempo estaria preso. Passou mais de dez anos na cadeia,
foi libertado por um breve período, mas, mesmo sabendo que o
risco de voltar à cadeia era grande, decidiu não
emigrar. Quando
publicou "Sinalizações na estrada", sua obra
mais conhecida e
radical, considerada a bíblia do
terror islâmico,
foi preso por pregar a derrubada
do governo, por
conspiração e por traição. Julgado, foi enforcado em 1966. Durante todo o período em que esteve na cadeia, sofreu toda sorte
de tortura, mas não parou de escrever. O resultado é uma obra
monumental, 30 volumes que
ele chamou de "À sombra do Alcorão", uma minuciosa exegese
do livro sagrado dos muçulmanos. Ele escreveu outros 24 livros, que se caracterizam por
impor demandas implacáveis
aos crentes que se quiserem
crentes. Mas o ódio ao Ocidente
será a grande marca de sua
obra. A viagem aos EUA certamente abriu-lhe os horizontes,
mas não na direção que a monarquia egípcia imaginava.
Como Al-Banna, Qutb não tinha dúvidas existenciais. À eterna pergunta — quem somos, de
onde viemos e para onde vamos
— ele tinha uma resposta simples: "O Alcorão explicou para o
homem o segredo de sua existência e o segredo do universo
que o cerca. Ele revelou quem o
homem é, de onde ele vem, com
que propósito e para onde vai ao
fim da vida." E, como Al-Banna,
Qutb acreditava que até mesmo
o mundo muçulmano encontrava-se no estado de Jahilliyyah, a
ignorância pré-islâmica.
Apesar das semelhanças,
Qutb superou Al-Banna. Ele é o
responsável pela principal transformação do movimento radical
islâmico: se antes a luta era para
devolver ao Islã a sua forma original e reunir todos os muçulmanos num só califado, depois de
Qutb a meta passou a ser a conversão de todo o mundo ao islamismo, sem exceção. É Qutb
quem lança as bases para uma
Jihad mundial, hoje principal objetivo da al-Qaeda e de Bin Laden. Para Qutb, a luta para livrar
as terras muçulmanas de governos corruptos vinha se mostrando infrutífera porque não se percebia, até ali, que o Ocidente,
com sua influência diabólica (o
que não faz uma
americana bêbada!), era o grande
entrave: era preciso também convertê-lo. Para ele,
o homem quis tomar o lugar de
Deus, tanto nos
países ditos mu-
çulmanos como nos ocidentais.
"A rebelião contra Deus transferiu ao homem o maior atributo
de Deus, a soberania sobre todas as coisas. E fez alguns homens senhores de outros. Somente num sistema islâmico de
vida, todos os homens se tornam livres da servidão de alguns
homens a outros homens e se
devotam à submissão do Deus
único, recebendo Dele orienta-
ção e se curvando diante Dele."
Qutb dirá que é preciso criar antes um Estado muçulmano modelo, que dê o exemplo da virtude islâmica ao mundo. E, logo
depois, empreender a luta para
que o Islã purificado vença, indistintamente, no Ocidente e nas
terras muçulmanas. "A beleza
do nosso sistema não pode ser
apreciada a menos que ele tome
uma forma concreta. Por isso, é
essencial que uma comunidade
ordene a sua vida de acordo
com ele e o mostre ao mundo.
Para que isso aconteça, é preciso que o movimento para o renascer do Islamismo seja iniciado em algum país islâmico", pregava Qutb em "Sinalizações da
estrada", para logo em seguida
descrever os passos seguintes:
"Essa religião é realmente uma
declaração universal para libertar o homem da servidão a outros homens e da servidão a
seus próprios desejos. É uma declaração de que a soberania pertence apenas a Deus e que Ele é
o senhor dos mundos. É um desafio a todos os tipos e formas
de sistemas baseados na soberania do homem. (...) Em resumo, é
preciso proclamar a autoridade
e a soberania de Deus para eliminar toda forma humana de governo e anunciar o mando Daquele que sustenta o Universo
sobre a Terra inteira." E, para
que não pairasse dúvidas sobre
os seus métodos, Qutb deixava
bem claro que a meta de expandir o Islã só seria obtida com o
uso da força. "O
estabelecimento
do domínio de
Deus sobre a Terra não pode ser
atingido apenas
com pregação.
Aqueles que
usurparam o poder de Deus não
desistirão do seu
poder meramente através de pregação. Se assim
fosse, a tarefa de estabelecer a
religião de Deus no mundo teria
sido muito fácil para os profetas
de Deus. E isso é contrário a toda
evidência da história dos profetas e da história das lutas da verdadeira religião em todas as gerações." Lendo essas declara-
ções conjugadas, é impossível
não lembrar a estratégia usada
pela al-Qaeda: primeiro, estabeleceu o que considerava ser um
Estado muçulmano perfeito no
Afeganistão e, depois, tão logo
pôde, declarou guerra ao mundo
ocidental com os atentados às
Torres Gêmeas e ao Pentágono.
Outro ponto na obra de Qutb
faz lembrar a al-Qaeda e o 11 de
Setembro. Diferentemente de AlBanna, para quem todo contato
com o Ocidente devia ser evitado, Qutb enxergava a necessidade de que os muçulmanos
aprendessem com não-muçulmanos toda sorte de técnicas e
ensinamentos. "Um muçulmano
pode ir a um não-muçulmano
para aprender ciências abstratas como química, física, biologia, astronomia, medicina, técnicas em produção, agricultura,
tecnologia, artes militares. A razão fundamental é que quando a
comunidade muçulmana pura
vier a existir, ela terá de ter especialistas em todos esses campos em abundância, para não incorrer em pecado", dizia Qutb.
Isso talvez explique por que, durante anos, os participantes do
11 de Setembro estudaram na
Europa e nos EUA (e foi em escolas americanas que eles
aprenderam a pilotar aviões).
Para justificar as suas teses,
Qutb teve, no entanto, de dar
nova interpretação a antigos
mandamentos do Alcorão. Somente uma interpretação bastante heterodoxa poderia justificar o ódio que ele prega aos judeus e aos cristãos, tradicionalmente vistos por muçulmanos
como "homens do Livro", ou seja, como parte da mesma tradi-
ção religiosa, filhos de Abraão e,
portanto, merecedores de respeito. "O Profeta, que a paz esteja com ele, definiu claramente,
de acordo com a Sharia, que
'obedecer' é "cultuar". Tomando
esse sentido do verbo 'cultuar',
quando judeus e cristãos não
obedecem, eles se igualam àqueles que associam outros a Deus",
diz Qtub, pondo então judeus e
cristãos no mesmo nível que os
idólatras e politeístas, a quem o
Alcorão manda punir com a
morte. Vem daí, também, a retó-
rica de Bin Laden e da al-Qaeda
sobre os novos "cruzados", o
ódio a Israel e aos judeus de todo o mundo, e a luta que deve
ser empreendida contra eles.
Mas a heterodoxia de Qutb,
travestida de ultraortodoxia, deu
outros passos. Como fez Qutb
para conciliar sua interpretação
segundo a qual impor o Islamismo ao mundo é um mandamento
de Deus e a clara e reiterada proibição do Alcorão de converter
qualquer pessoa à força ao Islamismo? Qutb disse que os estudiosos do Alcorão sempre erraram ao considerarem as duas
coisas inconciliáveis. Para ele, a
mensagem de Deus é tão clara, o
Islamismo é tão obviamente uma
forma de vida superior, que os indivíduos se converterão a ele tão
logo os governos de todo o mundo deixem de impedir que os seres humanos enxerguem isso.
"Quando o Islã libertar as pessoas de toda pressão política e
apresentar a sua mensagem espiritual, apelando para a razão, ele
dará a todas elas a liberdade para aceitar ou não as suas cren-
ças", dizia Qutb. Mas ele próprio
advertia: "Entretanto, essa liberdade não significa que eles possam fazer de seus desejos seus
deuses ou que eles possam escolher continuar na servidão a outros seres humanos. Mas, num
sistema islâmico, há espaço para
que todo tipo de gente siga suas
crenças, desde que obedeçam às
leis que serão baseadas na autoridade divina." Algo semelhante
acontece hoje na Arábia Saudita,
onde a liberdade de religião é
bastante restrita. Não é possível,
para nenhuma outra religião, fazer cultos em público, fazer proselitismo religioso, tentar conquistar adeptos: o crente de outra religião só pode rezar em casa e, mesmo assim, sem a presença de pessoas de fora do
meio familiar, porque, do contrá-
rio, arrisca-se a ser acusado de
desobediência, uma vez que nunca se sabe ao certo a partir de
que número de participantes um
culto, mesmo realizado privadamente, torna-se público.
Amanhã, no último artigo, como Qutb destrói a esperança de
muitos ocidentais que acreditam na estratégia de deixar o Islã em paz para que ele nos deixe
em paz também. E como Bin Laden se torna herdeiro de Qutb e
põe em prática as suas idéias. E,
por último, a ameaça: por que
pode ser evidente que não é
apenas um blefe a afirmação de
Bin Laden de que já dispõe de
capacidade nuclear.