"Mulheres", O Globo, 19/10/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Mulheres", O Globo, 19/10/2004

Toda vez que sai a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD), é a mesma história: ouve-se que as mulheres são discriminadas no mercado de trabalho. Elas ganham em mé- dia R$ 456, e os homens, R$ 722, 54% a mais. Para excluir qualquer dúvida, muitos se fixam no dado de que homens e mulheres com igual número de anos na escola têm salários diferentes, sem exceção. As mulheres com 11 anos ou mais de estudo, para citar apenas um caso, ganham, em média, R$ 829, enquanto os homens na mesma condi- ção recebem R$ 1.416. Um dado importantíssimo, no entanto, capaz de explicar diferença salarial tão grande, fica sempre escondido: as mulheres trabalham menos horas. 42% trabalham menos do que 39 horas semanais, enquanto apenas 15% dos homens têm jornada semelhante. 48% dos homens trabalham 45 horas ou mais por semana contra apenas 28% das mulheres. Menos horas trabalhadas, menos salário, essa é a regra.

Evidentemente, quando se leva em conta os afazeres domésticos, a jornada real de trabalho das mulheres é bem maior. Apesar de todo o avanço, muitas mulheres têm ainda de enfrentar uma dupla jornada: em casa, cuidando dos filhos e maridos, e, no trabalho, cuidando da profissão. É exatamente este o motivo que leva um número grande de mulheres a procurar empregos que lhes tornem possível essa dupla jornada, empregos que pagam invariavelmente menos. A mesma PNAD mostra isso. Excluindo-se os serviços domésticos, há maior concentração de mulheres em quatro áreas de atividade: agrícola (16%), educação, saúde e serviços sociais (17%), comércio e repara- ção (16%) e indústria (12%). Em todas essas áreas, as mulheres recebem menos do que os homens. Mas, em todas elas, também trabalham menos. Vejam a porcentagem das que trabalham menos do que 39 horas: agrícola (78%, contra 31% dos homens), educação, saúde e serviços sociais (47%, contra 37% dos homens), comércio e repara- ção (34%, contra 16% dos homens), indústria (32%, contra 8% dos homens). Ou seja, apesar de trabalhar nos mesmos setores, grande parte das mulheres é levada a procurar funções que exigem uma carga horária menor, com menor salário. Não são discriminadas porque são mulheres; recebem menos porque trabalham menos horas.

Uma maneira de verificar que a diferença salarial não se deve à diferença de gênero é constatar que não há grandes discrepâncias numa mesma faixa de rendimento. Por exemplo, na faixa dos que ganham entre um e dois salá- rios-mínimos, seria prova de discriminação se a média salarial das mulheres fosse puxada para o ponto inferior da escala (um salário) e a dos homens ficasse mais próxima do ponto superior (dois salários). Mas isso definitivamente não acontece. Na faixa dos que ganham entre meio salário-mínimo e um salário, a remuneração das mulheres é cerca de 2% superior à dos homens; na faixa entre um e dois salários, a diferen- ça a favor dos homens é de apenas 2%; na faixa seguinte, a diferença a favor dos homens cai para 1%; na faixa entre 3 e 5 salários, não há diferença entre o que recebem homens e mulheres; nas duas faixas seguintes (5 a 10 salários e 10 a 20 salários) a diferença pró-homens é novamente de apenas 1%. Isso prova que há igualdade entre homens e mulheres dentro de uma mesma faixa salarial. Portanto, ao se deparar com a informação de que, em média, os homens recebem 54% a mais do que as mulheres (R$ 722 contra R$ 456), o leitor apressado pode ser levado a erro. Não há discriminação: o que há é uma maior concentração de mulheres em funções que remuneram menos, pelas razões que já expus.

Uma tabela muito esclarecedora é a do Censo 2000, que mostra as diferen- ças salariais entre homens e mulheres em diferentes ramos de atividade. Na construção civil, homens recebiam em média R$ 487 e mulheres, R$ 658. Diante desses números, dizer que mulheres discriminam os homens seria um disparate. O que ocorre é que o setor concentra apenas 0,4% das mulheres economicamente ativas, e elas, provavelmente, são aquelas que trabalham como engenheiras. Em contrapartida, 11% dos homens trabalham no setor, e eles são desde o pedreiro até o engenheiro. A média salarial dos homens leva em conta os salários de todas as funções, ficando, assim, menor do que a das mulheres, em sua maior parte engenheiras. É exatamente o mesmo efeito que explica as diferenças salariais entre homens e mulheres com 11 anos ou mais de estudo: os homens devem ter optado por profissões mais lucrativas e muitas mulheres procuraram aquelas que lhes tornassem possível a dupla jornada.

Com todos esses dados, não quero nem de longe deixar dúvidas de que sei o quanto é sacrificada a vida das mulheres que trabalham fora e ainda têm de cuidar da casa. São umas heroínas. Mas, ao analisar as estatísticas sobre homens e mulheres no mercado de trabalho, não se deve olhar para a aparência dos números e chegar à conclusão sem base na realidade: "As mulheres recebem menos do que os homens porque são discriminadas." É preciso buscar todos os números, analisá-los em perspectiva, sem nunca esquecer que tudo tem uma racionalidade econômica por trás.

PS: A pesquisa do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, que mostra que há 47 milhões de brasileiros indigentes, deixou-me horrorizado. Não pelo resultado, mas pelo método. Ela diz que quem não tiver renda para uma dieta diária de 2.888 calorias é indigente. O Departamento de Saúde dos EUA mostra que os homens de lá consomem 2.475 calorias/dia; as mulheres, 1.833. No Reino Unido, informa-se: 2.550 calorias para homens e 1.940, para mulheres. Qualquer consumidor ao analisar os dados nutricionais de um alimento lê que eles se baseiam numa dieta de 2.000 calorias. Pelos dados da pesquisa brasileira, chegaremos a uma de duas conclusões: ou não temos 47 milhões de indigentes ou EUA e Reino Unido terão de importar o nosso Bolsa Família.