Quando terminei de ler todo o projeto, a minha sensação era de que, se aprovado, o Estatuto da Igualdade Racial deixará para
trás, de uma vez por todas, o Brasil
que conhecemos e criará um outro
país, cindido racialmente, em que a
noção de raça, base de todo racismo, estará no centro de tudo, quando deveria estar definitivamente enterrada. O projeto já foi aprovado
no Senado e, agora, está para ser votado na Câmara. Se eu disser a alguém que se trata de uma lei sulafricana do tempo do apar theid, e
pedir que leia alguns de seus artigos, certamente não haverá nenhum estranhamento.
"O quesito raça/cor, de acordo
com a autoclassificação, e o quesito gênero serão obrigatoriamente introduzidos e coletados em todos os documentos em uso no Sistema Único de Saúde", diz o artigo
12, arrolando os documentos: cartões de identificação do SUS,
prontuários médicos, formulários
de resultado de exames laboratoriais, inquéritos epidemiológicos,
pesquisas básicas, aplicadas e
operacionais etc. O artigo 17 determina o mesmo para os documentos da Seguridade Social, e o
18 determina que as certidões de
nascimento contenham também a
cor do bebê, o que não acontece
hoje. Da mesma forma, os empregadores públicos e privados terão
de incluir o quesito cor em todos
os registros de seus funcionários,
tais como formulários de admissão e demissão no emprego e acidentes de trabalho.
Como conciliar a autodeclaração com as regras acima? O paciente chega inconsciente ao hospital e morre: quem dirá se ele é
branco, preto ou pardo? O filho
nasce e o pai diz que ele é branco:
e se, quando crescer, o filho se
olhar no espelho e chegar à conclusão de que é negro?
Como se vê, definitivamente, os
brasileiros seremos definidos pela "raça", um conceito que a ciência repudia. Será o fim do país que se orgulhava de sua miscigenação, que
sabia que ninguém é inteiramente
branco ou inteiramente preto, que
tinha orgulho de seu largo gradiente
de cores. Seremos transformados
num país bicolor, num país não de
brasileiros simplesmente, mas de
brasileiros negros, de um lado, e
brasileiros brancos, do outro. E a
suposição será a de que os dois lados não se entendem.
Os disparates do estatuto são
muitos. Contra toda evidência
científica, o projeto parte do pressuposto de que existem doenças
raciais. Assim, dispõe o artigo 14:
"O Poder Executivo incentivará a
pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira,
bem como desenvolverá programas de
educação e saúde e
campanhas públicas
que promovam a sua
prevenção e adequado tratamento." Ou
seja, o estatuto acredita que haja "doen-
ças de negro" (embora, a despeito de ser
um "estatuto da
igualdade racial",
não faça menção a
"doenças de branco"). Isso é um absurdo, do ponto
de vista da ciência. De fato, há
doenças cuja origem é genética,
mas elas não estão relacionadas à
cor do indivíduo. Em sociedades
segregadas, como a americana ou
a sul-africana, em que os grupos
populacionais não se misturam, é
provável que haja prevalência de
certas doenças em determinados
segmentos. Mas isso nada tem a
ver com a cor.
O problema da anemia falciforme em negros, por exemplo: hoje
se sabe que quem tem o gene dessa doença é mais resistente à malária. Por essa razão, nas regiões
africanas onde a malária é mais
presente, há mais pessoas com
anemia falciforme, algo explicado
pela Teoria da Evolução, de Darwin. Mas, nas outras regiões
da África em que a malária não é
um grave problema, a anemia falciforme não existe. Os negros com
ancestrais nas regiões onde a malária é endêmica têm mais chances de ter a anemia falciforme,
mas os negros de outras áreas,
não. Assim, não se pode dizer que
a doença seja prevalente entre negros. Além disso, um indivíduo
pode ser totalmente branco e ter
o gene da anemia falciforme, desde que tenha algum ancestral negro também portador do gene.
Num país como o Brasil, em que a
mistura é total, nenhum controle
"racial" de doenças faz sentido,
porque brancos e negros, tendo
ancestrais comuns, dividem o
mesmo patrimônio e a mesma carga genética. Apesar
disso, o estatuto dedica quase uma página inteira à anemia
falciforme em negros .
Há de tudo no estatuto: a permissão
para que tradicionais mestres em capoeira dêem aulas
em escolas públicas
e privadas, a obrigatoriedade do ensino
da História Geral da
África e do Negro no Brasil para
alunos das redes oficial e privada
e a permissão para que praticantes das religiões "africanas e afroindígenas" ausentem-se do trabalho para realização de obrigações
litúrgicas próprias de suas religiões, "podendo" tais ausências
serem compensadas posteriormente. Não fica claro se brancos
terão também direito a dar aulas
de capoeira ou a fazer suas obrigações da Umbanda e do Candomblé durante o expediente (já que,
no Brasil, são também assíduos
freqüentadores de terreiros). Mas
o que mais preocupa no estatuto é
a cizânia que pode causar no mercado de trabalho. Diz o artigo 62:
"Os governos federal, estaduais e
municipais ficam autorizados (...) a realizar contratação preferencial de afro-brasileiros no setor
público e a estimular a adoção de
medidas similares pelas empresas
privadas." Uma das medidas previstas é a adoção de uma cota inicial de 20% para o preenchimento
de todos os cargos DAS (vagas
que não exigem concurso público); esta cota será ampliada até
que se atinja a correspondência
com a "estrutura da distribuição
racial nacional". E de que modo as
empresas privadas serão estimuladas a contratar preferencialmente negros? Entre outras coisas, pela exigência de que empresas fornecedoras de bens e servi-
ços ao setor público adotem programas de igualdade racial. Em
outras palavras: que contratem
preferencialmente negros. Num
país em que ninguém sabe ao certo quem é branco e quem é negro,
a medida é de difícil aplicação.
Mas o pior é que ela poderá ser
um estímulo para o surgimento de
rancores em grupos e pessoas que
se sintam preteridas, algo que
desconhecemos até aqui.
Sim, claro, o estatuto estabelece também a obrigatoriedade de
cotas raciais para o ingresso de
estudantes no ensino superior. E
acrescenta cotas para programas
de TV, filmes e anúncios publicitários.
É um outro Brasil que este estatuto quer fundar. O que os brasileiros precisam decidir é se desejam este novo Brasil. Meu palpite
é que se o tema fosse posto em referendo, com campanhas esclarecedoras de ambas as partes, o resultado mostraria que ainda sonhamos com o ideal de uma nação
orgulhosa de sua miscigenação,
em que raça e cor não importam.
Mas não defendo um referendo.
Nossos representantes no Congresso têm a legitimidade para decidir. E espero que tenham a coragem de agir a despeito de grupos
de pressão, por mais barulhentos
que eles sejam.