Outro dia, ao me internar
num hospital para um
check-up , a recepcionista, ao lado das perguntas
de praxe (nome, endereço etc.),
perguntou-me qual era a minha religião. Fiquei espantado: para que
um hospital quer saber a minha religião? Se for para saber se tenho alguma restrição alimentar, basta perguntar diretamente isso. Eu respondi, mas não gostei da pergunta,
achei-a uma curiosidade indevida.
Ao subir o elevador, senti-me bem
num país em que perguntas assim
são raras e consideradas pela maioria como indevidas.
Fico também sempre feliz quando
constato que vivemos num país em
que nenhum candidato a emprego
tem de responder a esse tipo de
questão ou a outras, como cor ou
raça. O leitor pode imaginar: o cidadão se candidata a uma vaga e, em
entrevista ou questionário escrito,
tem de dizer de que cor é. Uma pergunta virá à mente: qual a cor preferida deles, que candidatos têm
mais chances? E a suspeita de racismo se tornaria muito forte. Feliz o
Brasil, cujas empresas não perguntam isso a candidato algum.
Não é o que pensam alguns. O Instituto Ethos, em parceria com outras entidades, divulgou um estudo
sobre a participação do negro nas
500 maiores empresas do país. E lamentou, com os jornais, o fato de
que 27% delas não souberam responder quantos negros havia em cada nível funcional. Esse dado foi divulgado como indício de que, no
Brasil, existe racismo. Um paradoxo. Quase um terço das empresas
demonstra a entidades seriíssimas
que "cor" ou "raça" não são filtros
em seus departamentos de RH e,
exatamente por essa razão, as empresas passam a ser
suspeitas de racismo.
Elas são acusadas por
aquilo que as absolve.
Tempos perigosos,
em que pessoas, com
ótimas intenções, não
percebem que talvez
estejam jogando no lixo o nosso maior patrimônio: a ausência
de ódio racial.
Há toda uma gama
de historiadores sé-
rios, dedicados e igualmente bem-intencionados, que estudam a escravidão e se deparam com
esta mesma constatação: nossa riqueza é esta, a tolerância. Nada escamoteiam: bem documentados, mostram os horrores da escravidão, mas
atestam que, não a cor, mas a condi-
ção econômica é que explica a manutenção de um indivíduo na pobreza.
Não negam o racismo, porque sabem
que onde quer que haja homens haverá todos os vícios que se podem
supor. Mas, com números, argumentam que a inexistência da intolerância racial tem raízes na nossa Histó-
ria. A verdade é que a escravidão não
assentava sua legitimidade em bases
raciais, pois era grande a mobilidade
social dos escravos. Tão grande que,
na região de Campos, na virada para
o século XIX, um terço da classe senhorial era de "pessoas de cor", segundo censos da época. Isso se repetia em Minas e na Bahia. Ou seja, uma vez
alforriados, a cor não
era impedimento para
que os negros fossem
aceitos como iguais entre os brancos: bastava
dinheiro. Hoje, se a
maior parte dos pobres é de negros, isso
não se deve à cor da
pele. Não existe isso,
no Brasil: "É negro, deixa na pobreza." Nos últimos cem anos, nosso
modelo foi concentrador de renda:
quem era pobre boas chances teve
de continuar pobre. Há menos de
uma década o país tem enfrentado
esse desafio. Com uma melhor distribuição de renda, a condição do negro
vai melhorar acentuadamente. Porque, aqui, cor não é uma questão.
A pesquisa do Ethos mostra isso,
mas o instituto e os jornais preferiram destacar os dados ainda negativos. Manchetes foram para o fato
de que, embora os negros sejam 46%
da população, apenas 23,4% dos empregados das 500 maiores empresas
são negros. Isso foi mostrado como
prova de que no Brasil existe racismo, mas a própria pesquisa mostra
que talvez isso se deva principalmente à condição educacional dos
pobres. Em 1992, o analfabetismo
atingia 19,2% das crianças negras
entre 10 e 14 anos; em 2002, esse nú-
mero caiu para 5,8%. Em 1992, 51,2%
das crianças negras estavam atrasadas no ensino escolar; em 2002, esse
número desabou para 22,3%, uma
queda de trinta pontos percentuais.
Ora, em vez de se concluir que, com
essa tendência, tudo indica que nos
próximos anos a participação dos
negros nas empresas será muito
maior, preferiu-se destacar o retrato
parado da situação de hoje e decretar: os negros não são tão numerosos como deveriam ser naquelas
empresas, não por questões educacionais comuns a toda a população
pobre, mas porque as empresas são
racistas. Mas até mesmo os dados
que mostram que negros ganham
metade do que ganham os brancos
não dizem tudo: a diferença cai muito se educação for um filtro (e, mesmo assim, estatística nenhuma capta diferenças na qualidade da educa-
ção recebida)".
É uma maneira torta de ver as coisas. E perigosa, porque pode inaugurar no Brasil o que não há: ódio racial. E há muitos indícios de que ele
não existe. Na própria reportagem
publicada há dias no GLOBO sobre a
pesquisa da Ethos, um funcionário
de uma das empresas foi entrevistado. Ele deu um testemunho eloqüente de que nunca enfrentou racismo
no emprego. Textualmente, eis o que
disse: "Sempre que disputei uma vaga, fiquei com o emprego. Sou um
bom profissional e, sem dúvida, um
profissional de sorte." Ou seja, ele
atestou que nunca a sua cor fora impedimento para conseguir uma vaga,
o determinante era o seu talento.
Mas o discurso bem-intencionado
que vê racismo em tudo está come-
çando a ficar tão disseminado que se
preferiu publicar o seguinte subtítulo: "O técnico Leílson Gomes credita
parte de sua ascensão profissional à
sorte." Este é o perigo: o que é um patrimônio passa a ser encarado como
obra do acaso. Não, Leílson ganhou
todas as vagas que disputou porque
nós, brasileiros, conseguimos construir um país que, apesar de muitos
defeitos, tem uma grande qualidade:
a inexistência de ódio racial. Isso não
é sorte. É o fruto da construção de
gerações que experimentaram sempre a tolerância. Perder isso, agora,
não será azar. Será o resultado de
boas intenções que não conseguem
ver a riqueza que temos.