Neste início de século XXI eu
acreditava que já era impossível que a política provocasse tanta eletricidade. Experimentados por duas décadas de
democracia, eu imaginava que todos
nós brasileiros já soubéssemos que
não existem milagres, não existem milagreiros e também não existem bruxos nem bruxaria. Não há nada a fazer,
senão debater idéias: vence sempre
aquele que convenceu a maior parte
do povo. Uma obviedade.
Mas a campanha eleitoral mostrou
que a nossa maturidade política vai até
o ponto em que uma parte ou outra imagina que esteja próxima de ganhar ou
próxima de perder, o que é uma mesma
situação. Neste momento, embora os
atores políticos permaneçam racionais
(ninguém rasga dinheiro), eles tentam
pôr a sociedade para girar no compasso
da irracionalidade. De lado a lado, estimulam toda sorte de boatos, fazem acusações infundadas, inventam mentiras e
constroem teorias conspiratórias as
mais estapafúrdias. Põem-se no lugar de
milagreiros e os adversários no de bruxos, e vice-versa. E sempre com ares de
indignação, revolta, pompa. Prometem
milagres e acusam os adversários de lhe
fazerem bruxaria, e vice-versa. A internet facilitou isso à exasperação, com a proliferação de blogs cujo compromisso
ético com a informação é nenhum. Os
cidadãos começam então a receber torrentes de e-mails, cada um travestido
como pode de seriedade e compromisso com a verdade. As técnicas são muitas, e os leitores, com certeza, já foram
vítimas de algumas delas.
Ocorre que isso tem um efeito. É como um rastilho de pólvora que atinge o
material explosivo. E, por algumas semanas, o país vira palco dessa sandice.
Aqui no Rio, acreditando-se adversá-
rias, duas correligionárias brigaram até
que uma arrancou parte do dedo da outra com uma mordida. Passeando pela
praia, bastava uma camiseta isolada da
campanha adversária cruzar com um
grupo grande do outro candidato, com
todos os membros também devidamente uniformizados, para que vaias e apupos surgissem, algumas vezes com canções "bem-humoradas" ofendendo o
solitário eleitor. Vi um desses solitários
reagir da maneira mais condenável:
com gestos usando o dedo, mandou todo o grupo para aquele lugar, ou para
fazer aquilo, com uma expressão de
ódio no rosto que dava medo. Chamado
de pitbull, arriscou-se a ser linchado.
Não via essa eletricidade assim havia
muito tempo. No Rio, certamente desde
a eleição de Brizola em 1982 e a de Collor em 1989. Um ambiente ruim.
Por que menciono tudo isso? Por-que, num ambiente assim, aqueles setores da sociedade que se mantêm,
por dever de ofício, à margem dessa
eletricidade passam a irritar todos os
apaixonados. E viram alvo. Refiro-me
à grande imprensa, que, no Brasil,
atingiu um alto grau de profissionalismo, podendo se comparar, com vantagens ali e desvantagens acolá, com
as melhores imprensas do mundo. De
repente, quando os fatos contrariam
uma ou outra corrente política, a imprensa, que na sua imensa maioria se
mantém dentro dos limites da isenção
e da imparcialidade, passa a ser vista
como parte e aliada dos adversários.
É como se houvesse um desejo ardente nos políticos para que a imprensa
fosse, não neutra, como deve ser, mas
adesista (não importa o lado). Como
ente com influência indireta na disputa,
mas sem a contaminação pela cegueira
política, a imprensa passa a ser vista,
por todos os lados, como parte, porque, ao se limitar a noticiar os fatos,
contraria ora esta ora aquela corrente.
Alguns políticos agem como se desejassem a seguinte lei: "Se os fatos me prejudicam, fora com os fatos."
A grande imprensa, aquela que realmente é sólida em seus princípios, é
imune a isso. Pode cometer erros aqui e
ali, pode cometer alguns desvios não intencionalmente, mas sempre acaba por
corrigi-los. Porque ela vive de sua fidelidade aos fatos, sua credibilidade vem
daí. Trair esse compromisso é comprometer o próprio futuro. A grande imprensa sabe disso. Até porque tem um
passado. Diante da ira dos políticos, é
preciso paciência. Como diz uma velha
piada nas redações, "é preciso muita
calma nessas horas".
Volta e meia, porém, surgem publicações que traem esses compromissos. Aderem a um dos lados e se põem
a serviço dele. No início, fazem algum
barulho, mas, depois, morrem. Porque, como tudo na vida, as paixões
acabam. E, sem elas, os defeitos sobressaem, as traições aparecem e a relação chega ao fim.
Muitos leitores, que, como parte do
processo eleitoral, não estão imunes a
paixões, momentaneamente olham para o seu veículo de imprensa predileto e
vêem nele o que os políticos gostariam
que vissem. Onde há fatos, vêem conspiração; onde há notícia, vêem distorção; onde há isenção, vêem parcialidade. Mas quando a disputa termina e a
serenidade volta, reconhecem que a
distorção não estava nos veículos, mas
nos próprios olhos.
Porque não existem nem milagres
nem milagreiros, nem bruxos nem
bruxarias.