Em 1940, 87% dos negros
americanos estavam abaixo da linha da pobreza. Em
1960, antes mesmo da Lei
de Direitos Civis, que acabou com a
segregação odiosa entre negros e
brancos, esse número despencou
para 47%. Em 1970, já na vigência
da lei que garantiu direitos iguais,
mas antes da implementação das
políticas de cotas, o número de negros pobres caiu mais 17 pontos
percentuais. De lá para cá, quando
as cotas se disseminaram nos EUA,
a proporção de negros pobres caiu
apenas mais um ponto: desde então, oscila em torno de 29%. Em
1940, os negros americanos entre
25 e 29 anos tinham quatro anos de
estudo a menos do que os jovens
brancos. Em 1960, essa diferença já
tinha caído para 2 anos. E, em 1970,
antes das cotas, era de menos de
um ano: 12,1 contra 12,7.
A quem então essas políticas beneficiaram? Aos negros que já tinham saído da pobreza por conta
própria. É sempre assim: quando se
adotam políticas desse tipo, são os
mais afortunados entre os menos
afortunados que se beneficiam delas, porque são eles que têm mais
acesso às informações, mais educação, mais recursos. O efeito danoso
das cotas é que muito antes delas
os negros americanos, num esforço
próprio gigantesco, tinham conseguido avançar magistralmente,
mas, hoje, a sociedade americana
acredita que o êxito deles se deve a
algum tipo de generosidade.
Se o negro americano, numa sociedade racista e legalmente segregada como a americana antes de
1960, conseguiu avanços extraordinários, o que não conseguiria o negro brasileiro, numa sociedade absolutamente menos racista, se nós
hoje estivéssemos lutando unidos
por investimentos maciços na educação básica?
Em vez disso, uma parcela da opinião pública se bate por cotas, sem
querer acreditar que o resultado prático delas será cindir racialmente a
pobreza. No Brasil, temos uma tarefa
inadiável: dar educação básica de
qualidade aos pobres, sem distinção
de cor, porque os pobres, indistintamente, sofrem demasiadamente.
A radicalização do debate, porém, leva a atitudes até bem pouco
tempo inimagináveis vindas de pessoas de bem, como Elio Gaspari e
Miriam Leitão. Ambos acusaram os
que são a favor das cotas de tentar ganhar o debate com base em truques perversos e apropriação indé-
bita do pensamento alheio, uma espécie de fast food das idéias. Um
equívoco.
Ninguém pode dizer que Martin
Luther King era a favor de cotas. Ninguém pode também dizer o contrá-
rio. Simplesmente porque ele jamais
se manifestou claramente sobre
elas. É verdade que ele
se disse favorável a políticas de reparação,
mas é igualmente verdade que ele queria
que tais políticas beneficiassem pobres, fossem brancos ou negros. É verdade que ele
disse que uma sociedade que fez coisas especiais contra os negros
durante centenas de
anos precisava agora
fazer alguma coisa especial por eles, equipando-os para
competir numa base justa e igual.
Mas depreender daí que ele advogava a adoção de cotas é uma ilação
que fica por conta de quem a faz. Eu,
por exemplo, entendo que "equipar"
pode aí significar dar-lhe educação
de qualidade. É verdade que Martin
Luther King advogou que uma empresa ou uma fábrica tivesse um
quadro funcional que refletisse a estrutura de cor da população, mas ele jamais disse que isso deveria ser feito mediante cotas compulsórias. Eu
sempre imaginei que ele desejasse
alcançar tais metas pelo fim do racismo dos empresários e pela eleva-
ção educacional dos negros.
O que é certo é que o sonho de
Martin Luther King era chegar a
uma sociedade em que as pessoas
não fossem julgadas pela cor da pele, mas pelo caráter.
Esse sonho é o meu e,
até onde posso ver,
daqueles que vêem
nas cotas o perigo de
acirrar o racismo em
vez de atenuá-lo. Querer me dizer com o
que devo sonhar é
mais do que arrogância; é uma demonstração de intolerância totalitária vinda de alguém que sempre lutou contra isso. A pior
ironia é que hoje, nos EUA, quem
mais se bate para provar que King
advogava cotas é a extrema-direita
racista. Eles querem destruir o que
chamam de um mito: a crença, consolidada nas últimas décadas, de
que o cerne do pensamento de King
era lutar por uma sociedade onde
raça não fosse um critério.
Eu, pessoalmente, jamais escrevi
que o problema das cotas é que elas
ferem o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Mas
essa é uma interpretação legítima. É
verdade que a Constituição permite
tratar desigualmente os desiguais, desde que haja um fundamento razoável e
um fim legítimo. É, de fato, o caso dos
impostos progressivos (quem ganha
mais paga mais). Mas será que o mesmo se dá com as cotas? Creio que não.
A regra dos impostos vale para todos:
se um pobre amanhã vier a ter uma
renda maior, ele pagará um imposto
maior. Ninguém tem um direito inato
para sempre pagar menos. Já com as
cotas a coisa é diferente: uma característica inata, a cor da pele, daria um
privilégio vitalício. Duas pessoas em situações em tudo equivalentes, mas diferentes na cor, não teriam o mesmo
direito. Ambos seriam pobres, com a
mesma renda, moradores do mesmo
bairro, mas um teria um privilégio para
entrar na universidade e o outro não.
Ou, pior, um negro rico teria um privilégio que seria negado a um branco
paupérrimo. É como se a origem de
classe determinasse, para sempre, o
quanto se pagaria de impostos: um cidadão, nascido pobre, pagaria sempre
menos imposto, mesmo que venha a
enriquecer; e um cidadão, nascido rico, pagaria sempre mais imposto, mesmo que venha a empobrecer. Isso é absurdo. Como as cotas raciais.
Da mesma forma, nunca se disse
que as cotas criarão o racismo,
porque sabemos que o racismo é
um sentimento abjeto presente em
todas as sociedades. O que se diz é
que as cotas vão acirrá-lo, dando
origem ao ódio racial, algo que até
aqui desconhecemos. Também não
ouço ninguém dizer que os que são
a favor das cotas são contra investir na qualidade do ensino básico.
Isso é apenas jogar com as palavras. O que se diz é que a prioridade é investir no ensino básico e
que, se isso for feito, as cotas serão
desnecessárias.
Não reconheço em ninguém o direito de me dizer que Brasil eu desejo. Não sei como classificar a afirmação de que os que são contrários
às cotas desejam um Brasil em que
negros e brancos estejam separados
por uma imensa distância social. Isso é um velho vício: quem não pensa
como eu é o mal.
Não caiamos nessa armadilha. Tenho dito aqui que ninguém tem o
monopólio da ética e da virtude. Numa democracia, uma opinião se torna majoritária apenas pela força de
seus argumentos.