No meio da crise política, a
imprensa virou alvo. Os
que aparecem como acusados falam em massacre
e em conspiração. Alguns acusadores falam em benevolência e falta de
firmeza. Ninguém fala em espelho.
É comum. Mesmo entre os
maiores defensores da liberdade,
muitas vezes ouvi coisas do tipo:
"Como é que vocês abrem espaço
para um assunto como esse?" O
assunto pode ser legítimo, mas,
se fere a suscetibilidade de um determinado grupo, ele quer vê-lo
banido do noticiário.
Todos têm uma tendência de
ver o espaço para suas idéias
sempre mais reduzido do que o
espaço para as idéias de seus adversários. Um estágio nas reda-
ções do país acabaria com essa
ilusão autoritária.
A cada minuto, os jornalistas
devem estar prontos para ter
acesso ao que acontece no Brasil
e no mundo. Devem ser capazes
de captar os fatos, escolher aquele com relevância para ser divulgado, entendê-lo, decodificá-lo e
recodificá-lo numa linguagem
acessível a multidões. É um processo contínuo, sem trégua, até o
fechamento .
A regra é aquela exigida pelo
público: cobrir os eventos com
correção, abordando todos os ângulos e dando voz a todas as personagens. Mas sempre há quem lembre
que exercitar permanentemente a crítica
para evitar a intromissão da nossa subjetividade, e a conseqüente falta de isen-
ção, é impossível
num processo frené-
tico como o jornalístico. Mas será mesmo que nós jornalistas estaremos condenados a oferecer ao
público informação contaminada,
material enviesado?
Não, eu digo não com tranqüilidade. Porque o mesmo ambiente e o
mesmo processo que tornam impossível um exercício auto-reflexivo contínuo de crítica aos nossos
valores produzem a vacina contra a
falta de isenção, contra a contaminação do noticiário pelos valores
do editor, pelo olhar do editor: o
jornalismo é sempre um trabalho
coletivo. Não existe o jornalismo de
uma pessoa só. A vacina é então a
multiplicidade de cabeças que fazem um jornal.
No momento em que um fato
chega à redação, o processo tem
início. Quem o "vende" ao editor
já carrega a "venda" com o seu
olhar, com os seus valores. Mas
logo a vacina entra em ação. O
grupo que ouve a "venda" filtrará
os valores dos colegas com os
seus próprios valores, neutralizando o efeito maléfico que o primeiro poderia ter. É muito comum
que se ouça de primeira um "isso
não vale", para, logo a seguir, verse instalar uma discussão rápida,
mas intensa, sobre se "isso vale
ou não vale mesmo", num debate
extremamente produtivo. A um
bom editor, mesmo àqueles
cheios de si, basta ouvir um "eu
acho que vale e você vai errar se
não publicar" para que uma luz
amarela se acenda: "Será que vale, será que não vale?"
Não se trata de indecisão; tratase da consciência de que ninguém
sabe tudo sozinho, de que o faro para o que é notícia muitas vezes é o
faro para saber ouvir as opiniões
daqueles que estão ao seu redor.
Decidido que um assunto "vale", inicia-se o processo de "como" publicá-lo: com destaque
ou sem destaque,
grande ou pequeno,
com imagem ou sem
imagem, na primeira
página ou nas páginas
internas? Tudo isso
vem acompanhado de
uma discussão entre
cabeças diferentes.
Não, não se trata de
democratismo. Nada
em jornalismo é decidido por maioria. Não
se vota. A maioria
nem sempre ganha. Aliás, a maioria
nem sempre se materializa. Eu me
refiro à natureza mesma do processo de trabalho: trata-se de um trabalho coletivo, imperativamente
coletivo, necessariamente coletivo.
Depende-se do repórter, do fotógrafo, do redator, do diagramador, do
subeditor, do editor, do editor-chefe, do diretor de redação. Tudo depende sempre de uma coleção de
cabeças.
A vacina funciona também graças
a outra característica das redações:
não existe filtro ideológico.
Eu sei, o leitor agora deve estar
achando que exagerei. Mas é a pura
verdade. Evidentemente, um jornal
procura se cercar dos
melhores profissionais: daqueles que
apuram bem, daqueles que escrevem
bem, daqueles que
são criativos, daqueles que são éticos, daqueles que têm uma
boa história profissional. Mas nunca seleciona um profissional
com critérios políticos, ideológicos ou religiosos. Um católico
não terá mais chance do que um
protestante ou um muçulmano. Ninguém pergunta: "Em quem você votou nas últimas eleições?" Não se
quer saber também a orientação sexual dos profissionais.
Não é que essa ausência de filtro
seja fruto apenas de uma regra formal. O filtro simplesmente não existe. Quando se trabalha com grandes grupos profissionais (falo de
100, 200, 300 profissionais), é impossível reunir um time ideologicamente uniforme. Simplesmente não
há tantos da mesma espécie. É essa
diversidade que funciona como
uma vacina.
A diversidade é sempre uma vacina, e em mais de um aspecto. Mesmo quando um jornal erra, mesmo
quando comete excessos, serão
sempre os seus concorrentes a chamá-lo à realidade. Um assunto menosprezado por um e ressaltado
por muitos acaba se impondo ao
noticiário, sempre para benefício
do público. É da natureza do mercado das informações, quando ele é
livre, que tudo se dê dessa forma. O
que um não disse, seja por erro, seja por incompetência, seja por
omissão, o outro dirá. O que um disser de errado, o outro dirá de certo.
Mesmo que um jornal erre por muitas semanas, outros acertarão. E será sempre o público a julgar.
A diversidade de que falo aqui —
principal garantidora da isenção no
jornalismo diário — em nada diminui as crenças de um jornal. Mas o
espaço para que isso aconteça é o
espaço dos editoriais, da opinião,
nunca o do noticiário.
Apesar disso, há intelectuais que
olham para nós e vêem não pessoas
livres, profissionais éticos, orgulhosos do seu trabalho, mas blocos
monolíticos comandados como robôs por
capitalistas com objetivos bem desenhados. Marilena Chauí
se espantou com as
marchas e contramarchas do noticiário político, como se isso
fosse uma novidade
da crise atual. Ela dá a
entender que gostaria
de ver os fatos políticos sendo noticiados
com uma coerência
que eles não têm. Os jornais não podem contar uma história arrumada,
coerente, plena de sentido se ela
não se apresenta assim. É no processo que a coerência se constrói,
que o sentido se forma. No jornalismo diário, numa crise política explosiva, não se pode ter a dimensão
do todo antes que o todo exista.
Chauí se mostra perplexa diante
da constatação de que, em nações
livres, a mídia, estando na esfera do
privado, é a porta de acesso ao espaço público das discussões, dos
debates, da produção e recepção
das informações pelos cidadãos.
Com isso, o meio, privado, deformaria a mensagem segundo seus interesses. É uma visão que infantiliza o
público: para se manterem, as empresas de mídia devem satisfazer os
anseios do público, e este demanda
informação de qualidade, correta,
isenta, abrangente. Eu poderia dizer que a crítica de Chauí revela um
saudosismo de experiências como
o "Pravda". Mas seria injusto: ela sabe que ali não se tratava de jornalismo, mas de propaganda.
Jornalismo só existe onde há liberdade. O que no fundo choca
esses intelectuais não é a cobertura da crise, mas a liberdade de a
cobrir.