"Nós, a imprensa", O Globo, 04/10/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Nós, a imprensa", O Globo, 04/10/2005

No meio da crise política, a imprensa virou alvo. Os que aparecem como acusados falam em massacre e em conspiração. Alguns acusadores falam em benevolência e falta de firmeza. Ninguém fala em espelho.

É comum. Mesmo entre os maiores defensores da liberdade, muitas vezes ouvi coisas do tipo: "Como é que vocês abrem espaço para um assunto como esse?" O assunto pode ser legítimo, mas, se fere a suscetibilidade de um determinado grupo, ele quer vê-lo banido do noticiário.

Todos têm uma tendência de ver o espaço para suas idéias sempre mais reduzido do que o espaço para as idéias de seus adversários. Um estágio nas reda- ções do país acabaria com essa ilusão autoritária.

A cada minuto, os jornalistas devem estar prontos para ter acesso ao que acontece no Brasil e no mundo. Devem ser capazes de captar os fatos, escolher aquele com relevância para ser divulgado, entendê-lo, decodificá-lo e recodificá-lo numa linguagem acessível a multidões. É um processo contínuo, sem trégua, até o fechamento .

A regra é aquela exigida pelo público: cobrir os eventos com correção, abordando todos os ângulos e dando voz a todas as personagens. Mas sempre há quem lembre que exercitar permanentemente a crítica para evitar a intromissão da nossa subjetividade, e a conseqüente falta de isen- ção, é impossível num processo frené- tico como o jornalístico. Mas será mesmo que nós jornalistas estaremos condenados a oferecer ao público informação contaminada, material enviesado?

Não, eu digo não com tranqüilidade. Porque o mesmo ambiente e o mesmo processo que tornam impossível um exercício auto-reflexivo contínuo de crítica aos nossos valores produzem a vacina contra a falta de isenção, contra a contaminação do noticiário pelos valores do editor, pelo olhar do editor: o jornalismo é sempre um trabalho coletivo. Não existe o jornalismo de uma pessoa só. A vacina é então a multiplicidade de cabeças que fazem um jornal.

No momento em que um fato chega à redação, o processo tem início. Quem o "vende" ao editor já carrega a "venda" com o seu olhar, com os seus valores. Mas logo a vacina entra em ação. O grupo que ouve a "venda" filtrará os valores dos colegas com os seus próprios valores, neutralizando o efeito maléfico que o primeiro poderia ter. É muito comum que se ouça de primeira um "isso não vale", para, logo a seguir, verse instalar uma discussão rápida, mas intensa, sobre se "isso vale ou não vale mesmo", num debate extremamente produtivo. A um bom editor, mesmo àqueles cheios de si, basta ouvir um "eu acho que vale e você vai errar se não publicar" para que uma luz amarela se acenda: "Será que vale, será que não vale?"

Não se trata de indecisão; tratase da consciência de que ninguém sabe tudo sozinho, de que o faro para o que é notícia muitas vezes é o faro para saber ouvir as opiniões daqueles que estão ao seu redor. Decidido que um assunto "vale", inicia-se o processo de "como" publicá-lo: com destaque ou sem destaque, grande ou pequeno, com imagem ou sem imagem, na primeira página ou nas páginas internas? Tudo isso vem acompanhado de uma discussão entre cabeças diferentes.

Não, não se trata de democratismo. Nada em jornalismo é decidido por maioria. Não se vota. A maioria nem sempre ganha. Aliás, a maioria nem sempre se materializa. Eu me refiro à natureza mesma do processo de trabalho: trata-se de um trabalho coletivo, imperativamente coletivo, necessariamente coletivo. Depende-se do repórter, do fotógrafo, do redator, do diagramador, do subeditor, do editor, do editor-chefe, do diretor de redação. Tudo depende sempre de uma coleção de cabeças.

A vacina funciona também graças a outra característica das redações: não existe filtro ideológico. Eu sei, o leitor agora deve estar achando que exagerei. Mas é a pura verdade. Evidentemente, um jornal procura se cercar dos melhores profissionais: daqueles que apuram bem, daqueles que escrevem bem, daqueles que são criativos, daqueles que são éticos, daqueles que têm uma boa história profissional. Mas nunca seleciona um profissional com critérios políticos, ideológicos ou religiosos. Um católico não terá mais chance do que um protestante ou um muçulmano. Ninguém pergunta: "Em quem você votou nas últimas eleições?" Não se quer saber também a orientação sexual dos profissionais.

Não é que essa ausência de filtro seja fruto apenas de uma regra formal. O filtro simplesmente não existe. Quando se trabalha com grandes grupos profissionais (falo de 100, 200, 300 profissionais), é impossível reunir um time ideologicamente uniforme. Simplesmente não há tantos da mesma espécie. É essa diversidade que funciona como uma vacina.

A diversidade é sempre uma vacina, e em mais de um aspecto. Mesmo quando um jornal erra, mesmo quando comete excessos, serão sempre os seus concorrentes a chamá-lo à realidade. Um assunto menosprezado por um e ressaltado por muitos acaba se impondo ao noticiário, sempre para benefício do público. É da natureza do mercado das informações, quando ele é livre, que tudo se dê dessa forma. O que um não disse, seja por erro, seja por incompetência, seja por omissão, o outro dirá. O que um disser de errado, o outro dirá de certo. Mesmo que um jornal erre por muitas semanas, outros acertarão. E será sempre o público a julgar.

A diversidade de que falo aqui — principal garantidora da isenção no jornalismo diário — em nada diminui as crenças de um jornal. Mas o espaço para que isso aconteça é o espaço dos editoriais, da opinião, nunca o do noticiário.

Apesar disso, há intelectuais que olham para nós e vêem não pessoas livres, profissionais éticos, orgulhosos do seu trabalho, mas blocos monolíticos comandados como robôs por capitalistas com objetivos bem desenhados. Marilena Chauí se espantou com as marchas e contramarchas do noticiário político, como se isso fosse uma novidade da crise atual. Ela dá a entender que gostaria de ver os fatos políticos sendo noticiados com uma coerência que eles não têm. Os jornais não podem contar uma história arrumada, coerente, plena de sentido se ela não se apresenta assim. É no processo que a coerência se constrói, que o sentido se forma. No jornalismo diário, numa crise política explosiva, não se pode ter a dimensão do todo antes que o todo exista.

Chauí se mostra perplexa diante da constatação de que, em nações livres, a mídia, estando na esfera do privado, é a porta de acesso ao espaço público das discussões, dos debates, da produção e recepção das informações pelos cidadãos. Com isso, o meio, privado, deformaria a mensagem segundo seus interesses. É uma visão que infantiliza o público: para se manterem, as empresas de mídia devem satisfazer os anseios do público, e este demanda informação de qualidade, correta, isenta, abrangente. Eu poderia dizer que a crítica de Chauí revela um saudosismo de experiências como o "Pravda". Mas seria injusto: ela sabe que ali não se tratava de jornalismo, mas de propaganda.

Jornalismo só existe onde há liberdade. O que no fundo choca esses intelectuais não é a cobertura da crise, mas a liberdade de a cobrir.