"Nossa culpa", O Globo, 18/05/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Nossa culpa", O Globo, 18/05/2004

Em 1° - de agosto de 2003, quase um ano atrás, a jornalista Bárbara Gancia, em sua coluna na "Folha de S. Paulo", escrevia: "A imprensa insiste em insinuar que Lula anda bebendo além da conta. É uma notinha maliciosa aqui, um comentário vil ali, e a gente acaba tendo a impressão de que o presidente do país é o Bóris Yeltsin." Cito a jornalista, porque o comentário dela era corretamente para condenar os rumores. De lá para cá, a coisa não parou, mas acentuou-se. Quem fizer uma pesquisa nos principais jornais e revistas vai se espantar com o número de vezes em que o assunto foi abordado por nós da imprensa. Ninguém dedicou uma reportagem inteira ao assunto, mas as notas e as referências aos hábitos etílicos de Lula eram tantas, que me motivaram a escrever um artigo, não dirigido a nenhum jornalista especificamente, condenando esse nosso procedimento.

Menos de uma semana depois do meu artigo, o correspondente do "New York Times" Larry Rohter escreveu uma reportagem botando o dedo na ferida. A matéria, claro, agravava em muitos graus os nossos desvios locais e cometia alguns erros a mais: insinuou que o pai de Lula abusava dos filhos e descreveu uma suposta bebedeira de Lula, anos atrás, em algum hotel de Brasília. Sobre esses fatos, Rohter não apresentou provas, fontes, nada. Apenas publicou a injúria .

A imprensa brasileira, porém, espantou-se de tal modo com a reportagem, que deu aos seus leitores a impressão de que o correspondente a tirara do nada. Ou seja, a mesma imprensa que nunca antes mencionara que outros presidentes, como fazem os comuns mortais, bebericaram doses de uísque em recep- ções formais e informais, achou normal publicar notas e artigos falando da relação de Lula com as bebidas. E, depois, indignou-se com comportamento semelhante do jornal americano.

O governo brasileiro, que agira bem ao calar-se em relação à imprensa brasileira, com justa razão sentiu-se ultrajado com a reportagem do jornal americano. Logo soltou uma nota, dizendo que o correspondente baseara-se em fontes obscuras e de pouca confiabilidade, referindo-se a dois jornalistas citados na reportagem. A imprensa, com indisfarçável gosto, fez coro com o governo. Um jornalista, Diogo Mainardi, é o cronista mais lido de "Veja", a revista de maior circulação do país. Dizer que ele é obscuro, é, portanto, uma impropriedade. E, como ele faz uma coluna de opinião, e não de informação, a confiabilidade dele é necessariamente proporcional à quantidade de leitores que tem. O outro jornalista, Cláudio Humberto, foi porta-voz de um presidente. Obscuro, ele também não é. Se é confiável, os leitores dele podem avaliar melhor do que eu. Mas um integrante do governo me disse que o presidente é vítima de um processo que costuma acontecer da seguinte forma: as notas saem em colunas como a do Cláudio Humberto, são repetidas pelos sites de informação, acabam em colunas de alguns jornais e, no fim, saem nas revistas semanais de informação. A ser verdade, falta mais controle em todas as nossas redações para julgar a confiabilidade alheia.

De qualquer forma, publicada a reportagem de Rohter, o governo desfrutou de um momento ímpar: a solidariedade unânime do país. E jogou tudo fora no dia seguinte quando, autoritariamente, decidiu expulsar o correspondente. Com toda razão, a imprensa classificou o ato de um atentado à liberdade de imprensa e defendeu, acertadamente, o direito de, mesmo errado, o correspondente continuar o seu trabalho. É assim que se faz. Pena que não vi ainda a defesa do mesmo direito em relação aos dois jornalistas espinafrados pelo governo. A liberdade de imprensa deve ser para todos. Goste-se ou não deles.

Consigo ver saldo extremamente positivo no episódio. A imprensa poderá ficar ainda mais cuidadosa em relação ao que publica e ser ainda mais tolerante com os colegas que pensam diferente. E o governo, que acabou voltando atrás na sua inten- ção de expulsar o correspondente, terá ainda mais certeza de que uma democracia é a vontade do povo não a do presidente.

PS: A partir de hoje, quinzenalmente, sempre às terças, ocuparei este pedaço de página e prometo levar em conta as lições que disse ver no episódio.