Em 1° - de agosto de 2003, quase um ano atrás, a jornalista
Bárbara Gancia, em sua coluna na "Folha de S. Paulo", escrevia: "A imprensa insiste em insinuar que Lula anda bebendo além da
conta. É uma notinha maliciosa aqui,
um comentário vil ali, e a gente acaba
tendo a impressão de que o presidente do país é o Bóris Yeltsin." Cito a jornalista, porque o comentário dela era
corretamente para condenar os rumores. De lá para cá, a coisa não parou, mas acentuou-se. Quem fizer
uma pesquisa nos principais jornais e
revistas vai se espantar com o número de vezes em que o assunto foi abordado por nós da imprensa. Ninguém
dedicou uma reportagem inteira ao
assunto, mas as notas e as referências
aos hábitos etílicos de Lula eram tantas, que me motivaram a escrever um
artigo, não dirigido a nenhum jornalista especificamente, condenando
esse nosso procedimento.
Menos de uma semana depois
do meu artigo, o correspondente
do "New York Times" Larry Rohter
escreveu uma reportagem botando o dedo na ferida. A matéria, claro, agravava em muitos graus os
nossos desvios locais e cometia alguns erros a mais: insinuou que o
pai de Lula abusava dos filhos e
descreveu uma suposta bebedeira
de Lula, anos atrás, em algum hotel de Brasília. Sobre esses fatos,
Rohter não apresentou provas,
fontes, nada. Apenas publicou a injúria .
A imprensa brasileira, porém, espantou-se de tal modo com a reportagem, que deu aos
seus leitores a impressão de que o correspondente a tirara do
nada. Ou seja, a mesma
imprensa que nunca antes mencionara que outros presidentes, como
fazem os comuns mortais, bebericaram doses de uísque em recep-
ções formais e informais, achou normal publicar notas e artigos
falando da relação de
Lula com as bebidas. E, depois, indignou-se com comportamento semelhante do jornal americano.
O governo brasileiro, que agira
bem ao calar-se em relação à imprensa brasileira, com justa razão
sentiu-se ultrajado com a reportagem do jornal americano. Logo soltou uma nota, dizendo que o correspondente baseara-se em fontes obscuras e de pouca confiabilidade, referindo-se a dois jornalistas citados
na reportagem. A imprensa, com indisfarçável gosto, fez coro com o governo. Um jornalista, Diogo Mainardi, é o cronista mais lido de "Veja", a
revista de maior circulação do país.
Dizer que ele é obscuro, é, portanto,
uma impropriedade. E, como ele faz
uma coluna de opinião, e não de informação, a confiabilidade dele é necessariamente proporcional à
quantidade de leitores
que tem. O outro jornalista, Cláudio Humberto, foi porta-voz de um
presidente. Obscuro,
ele também não é. Se é
confiável, os leitores
dele podem avaliar melhor do que eu. Mas um
integrante do governo
me disse que o presidente é vítima de um
processo que costuma acontecer da
seguinte forma: as notas saem em
colunas como a do Cláudio Humberto, são repetidas pelos sites de informação, acabam em colunas de alguns jornais e, no fim, saem nas revistas semanais de informação. A
ser verdade, falta mais controle em
todas as nossas redações para julgar
a confiabilidade alheia.
De qualquer forma, publicada a reportagem de Rohter, o governo desfrutou de um momento ímpar: a solidariedade unânime do país. E jogou tudo fora no dia seguinte quando, autoritariamente, decidiu expulsar o correspondente. Com toda razão, a imprensa classificou o ato de
um atentado à liberdade de imprensa e defendeu, acertadamente, o direito de, mesmo errado, o correspondente continuar o seu trabalho.
É assim que se faz. Pena que não vi
ainda a defesa do mesmo direito em
relação aos dois jornalistas espinafrados pelo governo. A liberdade de
imprensa deve ser para todos. Goste-se ou não deles.
Consigo ver saldo extremamente
positivo no episódio. A imprensa poderá ficar ainda mais cuidadosa em
relação ao que publica e ser ainda
mais tolerante com os colegas que
pensam diferente. E o governo, que
acabou voltando atrás na sua inten-
ção de expulsar o correspondente,
terá ainda mais certeza de que uma
democracia é a vontade do povo não
a do presidente.
PS: A partir de hoje, quinzenalmente,
sempre às terças, ocuparei este pedaço
de página e prometo levar em conta as
lições que disse ver no episódio.