No dia em que a ONU divulgou
seu mais recente estudo sobre mudança climática, com
previsões mais do que sombrias para a humanidade, institutos de
meteorologia anunciaram, bem ao estilo
das moças do tempo, que haveria no dia
seguinte muitas chuvas em toda a área
escura do mapa, que ia do Rio ao Amazonas. Acordei com o céu tão azul que,
apesar do meu extremo interesse, li
com certo desconforto as reportagens
dos jornais sobre o clima do futuro. Se
eles não conseguem prever se amanhã
vai chover ou não, como se atrevem a
dizer que a temperatura estará três
graus acima daqui a cem anos?
Li com atenção o sumário executivo
do estudo, disponível na internet (a íntegra do estudo só será liberada em três
meses). Acredito em tudo o que está ali
escrito. Em tudo. Mas, teimoso, fiquei
com muitas dúvidas.
Os cientistas olharam para trás e disseram ter descoberto que, de 1750 até
agora, a concentração de CO2 (gás carbônico) na atmosfera cresceu de 280
ppm (partes por milhão) para 379 ppm.
Ou seja, da era pré-industrial até os dias
de hoje, toda a poluição que fomos capazes de produzir em 257 anos fez a
concentração de CO2 aumentar praticamente 100 ppm. De 1850 a 2005, dizem, a
temperatura média na Terra aumentou
0,76°C. No estudo, eles afirmam que o
aquecimento global é inequívoco.
O resto é dúvida. O que os cientistas
dizem é que nos próximos 93 anos a
concentração de CO2 na atmosfera vai
pular para 600, ou para 700, ou para 800, ou para 850, ou para 1.250 ou para
1.550 ppm. Em conseqüência, a temperatura no planeta pode variar enormemente, numa seqüência que vai de
1,1°C até 6,4°C, sendo que a melhor
aposta deles é 3°C. Por que previsões
tão diferentes, então?
Porque as previsões dependem dos
cenários que os cientistas constroem
para o futuro: quanto o mundo vai
crescer, como vai crescer, quem vai
crescer, que tecnologias serão usadas,
quais serão as nossas fontes de energia, como a ciência vai evoluir, haverá
mais ou menos pobreza, as desigualdades entre regiões vão aumentar, estabilizar ou diminuir, quantos habitantes seremos, como as nações do mundo vão interagir política, econômica e
culturalmente. Quem conhece análise
combinatória sabe que poderia haver
quantos cenários os cientistas quisessem. Eles construíram três. Todos nós
que conhecemos a vida "apenas" por
viver sabemos o quanto é difícil fazer
previsões. Se fosse fácil, o mundo seria mais simples e mais chato.
Diante disso, alguém poderia concluir
que até para a ONU o futuro é incerto.
Errado: estranhamente, para os cientistas, incerto é o passado. Prova disso é
um quadro da página 7 do estudo. Ali,
relacionam-se eventos climáticos e a
probabilidade de que eles tenham ocorrido no passado recente (pós-1960) e
que venham a acontecer no futuro (no
fim deste século). Por exemplo: sobre
"dias e noites frios em menor quantidade e mais quentes", eles dizem que é
"muito provável" que o fenômeno tenha
acontecido no passado recente. Em relação ao futuro, porém, dizem que é "virtualmente certo" que isso venha a
acontecer! É uma ciência muito peculiar,
em que analisar o passado recente é
mais difícil do que prever o futuro distante. O mesmo se repete para todos os
fenômenos descritos no quadro. Eu
acredito, mas fiquei inseguro.
Da mesma forma, fiquei inseguro
com outros pontos. Na verdade, a grande questão que o estudo procura responder é se o aquecimento global é fruto da ação do homem ou de fatores naturais. No estudo anterior, de 2001, os
cientistas diziam que era "provável"
que o homem fosse o culpado (mais de
66% de chance). Agora, dizem que isso
é "muito provável" (mais de 90% de
chance), dois degraus abaixo do que
permitiria a metodologia: "extremamente provável" (95%) e "virtualmente
certo" (99%). E, pelo que todos entendemos, o aquecimento global provoca
fenômenos catastróficos para o planeta. Se é assim, por um silogismo simples, também haveria de ser de 90% a
certeza de que o homem é o responsável por esses outros fenômenos. Mas
não é isso o que o estudo afirma. É apenas "provável" (66% de certeza) que
dias frios menos freqüentes e mais
quentes e dias quentes mais quentes e
mais freqüentes sejam culpa do homem. Ondas de calor mais freqüentes,
chuvas torrenciais mais amiúdes, secas
mais freqüentes, aumento de ciclones
tropicais e incidência maior do aumento do nível do mar devem ser debitados
na conta da humanidade com ainda
mais cautela: é "mais provável do que
improvável" que elas sejam fruto da
ação humana (uma certeza de 50%). Se
é assim, só posso concluir que os cientistas culpam o homem pelo aquecimento global, mas não culpam, com o
mesmo grau de certeza, o aquecimento
global pelas tragédias anunciadas.
Como disse antes, não tenho a menor
condição de discordar do estudo da
ONU, mas acho que os cientistas, na sua
divulgação, levaram os jornalistas a dar
ao assunto um tom de certeza profética
que o próprio estudo não tem. Quando
uma cientista diz que o mal está feito
mesmo que cessem hoje todas as emissões de CO2, e os efeitos perversos do
aquecimento global persistirão pelo
próximo milênio, ela está apenas fazendo terrorismo verbal. Se não há nada a
fazer, relaxemos então, seria a mensagem. Coisa diferente seria alertar para
os riscos, mas admitir, com tranqüilidade, que a questão de fato é complexa.
Toda a nossa civilização está centrada na queima de combustíveis fósseis.
É possível tornar o processo menos
danoso, e isso tem sido feito: as fábricas hoje, poluentes, são menos poluentes que as do passado, assim como os carros, uma exigência do consumidor. Mas até que seja encontrada
uma fonte de energia abundante e limpa, o problema continuará posto.
Tenho muitas dúvidas, mas não uma:
é preciso combater a poluição, é preciso repensar como lidamos com a natureza. Mas o mundo não precisa ser tratado como se fazia com uma criança antigamente: metendo medo para se obter
novo padrão de comportamento.
P.S.: Versão ampliada do artigo em
www.oglobo.com.br/opinião.