"O clima", O Globo, 13/02/2007 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O clima", O Globo, 13/02/2007

No dia em que a ONU divulgou seu mais recente estudo sobre mudança climática, com previsões mais do que sombrias para a humanidade, institutos de meteorologia anunciaram, bem ao estilo das moças do tempo, que haveria no dia seguinte muitas chuvas em toda a área escura do mapa, que ia do Rio ao Amazonas. Acordei com o céu tão azul que, apesar do meu extremo interesse, li com certo desconforto as reportagens dos jornais sobre o clima do futuro. Se eles não conseguem prever se amanhã vai chover ou não, como se atrevem a dizer que a temperatura estará três graus acima daqui a cem anos?

Li com atenção o sumário executivo do estudo, disponível na internet (a íntegra do estudo só será liberada em três meses). Acredito em tudo o que está ali escrito. Em tudo. Mas, teimoso, fiquei com muitas dúvidas.

Os cientistas olharam para trás e disseram ter descoberto que, de 1750 até agora, a concentração de CO2 (gás carbônico) na atmosfera cresceu de 280 ppm (partes por milhão) para 379 ppm. Ou seja, da era pré-industrial até os dias de hoje, toda a poluição que fomos capazes de produzir em 257 anos fez a concentração de CO2 aumentar praticamente 100 ppm. De 1850 a 2005, dizem, a temperatura média na Terra aumentou 0,76°C. No estudo, eles afirmam que o aquecimento global é inequívoco.

O resto é dúvida. O que os cientistas dizem é que nos próximos 93 anos a concentração de CO2 na atmosfera vai pular para 600, ou para 700, ou para 800, ou para 850, ou para 1.250 ou para 1.550 ppm. Em conseqüência, a temperatura no planeta pode variar enormemente, numa seqüência que vai de 1,1°C até 6,4°C, sendo que a melhor aposta deles é 3°C. Por que previsões tão diferentes, então?

Porque as previsões dependem dos cenários que os cientistas constroem para o futuro: quanto o mundo vai crescer, como vai crescer, quem vai crescer, que tecnologias serão usadas, quais serão as nossas fontes de energia, como a ciência vai evoluir, haverá mais ou menos pobreza, as desigualdades entre regiões vão aumentar, estabilizar ou diminuir, quantos habitantes seremos, como as nações do mundo vão interagir política, econômica e culturalmente. Quem conhece análise combinatória sabe que poderia haver quantos cenários os cientistas quisessem. Eles construíram três. Todos nós que conhecemos a vida "apenas" por viver sabemos o quanto é difícil fazer previsões. Se fosse fácil, o mundo seria mais simples e mais chato.

Diante disso, alguém poderia concluir que até para a ONU o futuro é incerto. Errado: estranhamente, para os cientistas, incerto é o passado. Prova disso é um quadro da página 7 do estudo. Ali, relacionam-se eventos climáticos e a probabilidade de que eles tenham ocorrido no passado recente (pós-1960) e que venham a acontecer no futuro (no fim deste século). Por exemplo: sobre "dias e noites frios em menor quantidade e mais quentes", eles dizem que é "muito provável" que o fenômeno tenha acontecido no passado recente. Em relação ao futuro, porém, dizem que é "virtualmente certo" que isso venha a acontecer! É uma ciência muito peculiar, em que analisar o passado recente é mais difícil do que prever o futuro distante. O mesmo se repete para todos os fenômenos descritos no quadro. Eu acredito, mas fiquei inseguro.

Da mesma forma, fiquei inseguro com outros pontos. Na verdade, a grande questão que o estudo procura responder é se o aquecimento global é fruto da ação do homem ou de fatores naturais. No estudo anterior, de 2001, os cientistas diziam que era "provável" que o homem fosse o culpado (mais de 66% de chance). Agora, dizem que isso é "muito provável" (mais de 90% de chance), dois degraus abaixo do que permitiria a metodologia: "extremamente provável" (95%) e "virtualmente certo" (99%). E, pelo que todos entendemos, o aquecimento global provoca fenômenos catastróficos para o planeta. Se é assim, por um silogismo simples, também haveria de ser de 90% a certeza de que o homem é o responsável por esses outros fenômenos. Mas não é isso o que o estudo afirma. É apenas "provável" (66% de certeza) que dias frios menos freqüentes e mais quentes e dias quentes mais quentes e mais freqüentes sejam culpa do homem. Ondas de calor mais freqüentes, chuvas torrenciais mais amiúdes, secas mais freqüentes, aumento de ciclones tropicais e incidência maior do aumento do nível do mar devem ser debitados na conta da humanidade com ainda mais cautela: é "mais provável do que improvável" que elas sejam fruto da ação humana (uma certeza de 50%). Se é assim, só posso concluir que os cientistas culpam o homem pelo aquecimento global, mas não culpam, com o mesmo grau de certeza, o aquecimento global pelas tragédias anunciadas.

Como disse antes, não tenho a menor condição de discordar do estudo da ONU, mas acho que os cientistas, na sua divulgação, levaram os jornalistas a dar ao assunto um tom de certeza profética que o próprio estudo não tem. Quando uma cientista diz que o mal está feito mesmo que cessem hoje todas as emissões de CO2, e os efeitos perversos do aquecimento global persistirão pelo próximo milênio, ela está apenas fazendo terrorismo verbal. Se não há nada a fazer, relaxemos então, seria a mensagem. Coisa diferente seria alertar para os riscos, mas admitir, com tranqüilidade, que a questão de fato é complexa.

Toda a nossa civilização está centrada na queima de combustíveis fósseis. É possível tornar o processo menos danoso, e isso tem sido feito: as fábricas hoje, poluentes, são menos poluentes que as do passado, assim como os carros, uma exigência do consumidor. Mas até que seja encontrada uma fonte de energia abundante e limpa, o problema continuará posto.

Tenho muitas dúvidas, mas não uma: é preciso combater a poluição, é preciso repensar como lidamos com a natureza. Mas o mundo não precisa ser tratado como se fazia com uma criança antigamente: metendo medo para se obter novo padrão de comportamento.


P.S.: Versão ampliada do artigo em www.oglobo.com.br/opinião.