O
Brasil tem uma lei que rege
o programa Bolsa Família.
Enviada ao Congresso como medida provisória em
2003, ela foi aprovada em janeiro de
2004 e é muito clara: os beneficiários
devem ter uma renda familiar per capita de até R$ 100 (na semana passada, o governo alterou esse limite para
R$ 120, mas isso, agora, não vem ao
caso). A mesma lei diz que os beneficiários só podem receber o dinheiro
se mantiverem os filhos na escola e se
estiverem em dia com os programas
de saúde do governo – as tais condicionalidades. Mas, em nosso país, vigora um estranho estado de coisas:
as leis devem ser seguidas "mais ou
menos". Esse exotismo certamente
explica o nosso atual desenvolvimento econômico e civilizatório.
Estudos feitos a partir da PNAD-
2004 mostram claramente que o dinheiro tem ido para pessoas que estão
fora do público-alvo determinado pela
lei (enquanto muitos do que estão no
público-alvo nada recebem). Além disso, no quarto ano do mandato do presidente Lula, as condicionalidades de
saúde são mera ficção: nada, absolutamente nada, foi feito nesse campo. Na
área da educação, toda aquela promessa de informatizar o controle da
presença escolar se arrasta indefinidamente, com muitas justificativas: formação de cartéis que fazem disparar
os preços dos cartões e dos computadores, entraves impostos por licita-
ções complicadas etc.. O fato é que a
presença escolar continua sendo
acompanhada de maneira capenga e
pouco confiável. A lei não é cumprida.
Que governos ajam assim, é algo que
já não me surpreende.
O problema é que pesquisadores sé-
rios têm analisado os programas sociais à luz do que acreditam ser o certo
e o errado e não à luz do que diz a lei,
e, com isso, tendo ou não esse objetivo, acabam por chancelar os programas do governo. É o caso de Ricardo
Paes de Barros — no Brasil, um dos
mais competentes e brilhantes analistas de políticas sociais. Num estudo recente, ele diz, com base na PNAD-2004,
que a proporção dos que ganham o
Bolsa Família e não estão entre os 40%
mais pobres do país é de 17%. Ocorre
que a lei não manda
atender os 40% mais pobres, mas aqueles que
têm renda familiar per
capita de até R$ 100. Será então correto usar o
corte dos 40% mais pobres ou usar o corte dos
que têm renda per capita de até R$ 100? Se o
corte de R$ 100 for o utilizado, a proporção dos
que recebem o Bolsa Família e têm renda superior ao público-alvo pula
de 17% para 37%.
O mesmo estudo critica as aposentadorias especiais a idosos pobres e
deficientes físicos pobres, porque
31% dos beneficiários têm renda domiciliar per capita acima de meio salário mínimo. Mas, novamente, por
que usar este corte se a lei que instituiu as aposentadorias especiais
determinou que os beneficiários sejam apenas aqueles com renda familiar per capita menor do que um
quarto de salário mínimo? Se o corte
utilizado for esse, 60,4% dos beneficiários, e não 31%, têm renda superior ao limite estabelecido em lei.
Em outro artigo, Ricardo Paes de
Barros, Mirela de Carvalho e Samuel
Franco exaltam a importância de
programas de transferência de renda com condicionalidades na redu-
ção da desigualdade registrada no
Brasil: entre 2001 e 2004, o coeficiente de Gini caiu 0,024. A rubrica "outros rendimentos", da Pnad, registra
a renda oriunda dos programas sociais, e teve um inchaço substancial
nas camadas menos favorecidas: em
1999, a proporção de pobres que declaravam ali alguma renda era quase
zero e, em 2004, pulou para cerca de
60%. O exercício que
os pesquisadores fazem é zerar a renda declarada nessa rubrica e
verificar o efeito disso
no coeficiente de Gini.
"Na ausência dessas
transferências, a desigualdade teria passado
por uma redução 20%
inferior à efetivamente
ocorrida", dizem eles.
Outros fatores explicariam a queda na desigualdade: 12% da redu-
ção seriam devidos a mudanças nas
diferenças de escolaridade entre os
trabalhadores, 2% viriam da queda
no desemprego e 8% viriam do aumento do salário mínimo. No artigo,
os autores concluem, portanto, que
é grande a importância de uma rede
de proteção social "centrada no programa Bolsa Família": "Sua contribuição para a queda na desigualdade foi 2,5 vezes maior que a do aumento do salário mínimo", dizem.
Ocorre que o dinheiro das aposentadorias a idosos e deficientes físicos
pobres, um programa sem condicionalidades e com grande desvio de foco, também é declarado em "outros
rendimentos", e é um montante expressivo de recursos: se o governo
gastou em 2004 R$ 5,7 bi com o Bolsa
Família, gastou mais com as aposentadorias especiais — R$ 5,8 bi. Enquanto o benefício médio do Bolsa
Família em 2004 foi de R$ 68, o valor
das aposentadorias nunca é menor
do que o salário mínimo — R$ 260 naquele ano. Assim, pode-se chegar a
duas conclusões: o papel na redução
da desigualdade está bastante exagerado, no caso do Bolsa Família, e subestimado, no caso do salário mínimo, embora parte da importância do
mínimo venha de um programa mal
focado e que não pede nada em troca
aos beneficiários.
Mais uma vez fica provado: se as
leis fossem cumpridas, o Brasil seria
outro. Refiro-me obviamente ao governo, mas os pesquisadores poderiam contribuir se seus estudos refletissem as exigências das leis, para
que os programas pudessem ser
mais bem julgados. Neste caso, se o
governo cumprisse a lei, os de fato
necessitados seriam ajudados, com
um gasto muitas vezes menor. E o dinheiro que sobrasse iria para a educação, o instrumento mais eficaz na
emancipação da pobreza. Basta
olhar o próprio estudo dos pesquisadores: se com parcos recursos a educação já respondeu por 12% na redução das desigualdades, o que não faria com mais?
OBS.: A renda do público-alvo foi
analisada antes do recebimento dos
benefícios, através do artifício de
subtrair dela o dinheiro registrado
em "outros rendimentos", a rubrica
em que a PNAD aloca os recursos
oriundos de programas sociais.