Barack Obama tinha menos de
20 anos quando fez o seu primeiro discurso. Ele estava
num período difícil, tentando formar o seu caráter em meio a um
conflito de identidade: externamente,
comportava-se como um radical do
movimento negro, mas, por dentro,
não conseguia adaptar-se com sinceridade ao papel, certamente porque,
ao contrário dos brothers esisters, fora
criado por mãe e avós brancos. No livro "Sonhos vindos do meu pai", escrito entre 1992 e 1995, muito antes
de se tornar político, ele conta como
uma amiga, Regina, foi fundamental
para que ele se sentisse mais confortável consigo mesmo. Ao saber que o
nome dele era Barack, e não Barry, como o chamavam, Regina o estimulou
a adotar o nome verdadeiro, um pequeno movimento em busca de uma
vida sem tantos disfarces.
Certo dia, ainda quando estudava
na Occidental College, ele fez parte
de um protesto contra o Apartheid.
Pediram que Obama atuasse numa
encenação: ele começaria um discurso e, em seguida, seria interrompido
por dois estudantes brancos uniformizados como policiais (com o intuito de simbolizar as atrocidades na
África do Sul). Acontece que, ao sentar-se para escrever, descobriu o poder das palavras e sentiu que poderia
ir além de simplesmente provar a sua
ortodoxia política. Ele mesmo conta
como tudo aconteceu:
"Eu subi ao microfone: 'Há uma luta sendo travada', eu disse. Minha
voz mal chegava além das primeiras
fileiras. Umas poucas pessoas prestaram atenção, e eu aguardei a multidão se aquietar. 'Há uma luta sendo
travada. Ela está ocorrendo a um
oceano de distância. Mas é uma luta
que toca todos e cada um de nós.
Mesmo se soubermos disso ou não.
Mesmo se nós quisermos ou não.
Uma luta que exige escolhas. Não
uma luta entre negros e brancos. Não
uma luta entre ricos e pobres. Não, é
uma escolha mais difícil que essa. É
uma escolha entre dignidade e servidão. Entre o que é justo e o que é injusto. Entre engajamento e indiferen-
ça. Uma escolha entre o certo e o errado.' Eu parei. A multidão estava
quieta agora, me observando. Alguém começou a aplaudir. 'Vai fundo,
Barack', alguém gritou. 'Continue
nesta pegada.' Depois, os outros começaram a aplaudir, a me saudar, e
eu soube que eu os tinha, que a conexão havia sido estabelecida. Eu peguei o microfone, pronto para continuar, quando senti a mão de alguém
me agarrando por trás. Era exatamente o que tínhamos planejado. (...)
Eu tinha que agir como se estivesse
tentando me livrar, mas uma parte de
mim não estava representando. (...)
Eu tinha tanto mais a dizer."
O episódio desagradou ao universitário Obama, ele achou a representação falsa, queria falar mais, mas, ao
mesmo tempo, temeu que estivesse
apenas à procura do aplauso fácil.
Obama acabou discutindo rispidamente com Regina, mais madura,
mas a discussão, no fim das contas,
levou-o a refletir: "Minha identidade
pode começar com a minha raça,
mas não se completa, não pode se
completar com ela. Ao menos, foi nisso que escolhi acreditar."
A que vem todo esse relato? No iní-
cio de março, começaram a vir à tona
sermões antigos do pastor Jeremiah
Whright, da Igreja de Cristo Trindade
Unida, que Obama freqüenta há anos.
As palavras do pastor são abominá-
veis: chama o país de Estados Unidos
da Ku Klux Klan, afirma que é mentira
que os japoneses tenham bombardeado Pearl Harbor de surpresa e diz
que o 11 de Setembro foi o resultado
dos genocídios que os americanos
perpetraram no exterior.
Quando Obama se viu acuado pela
repetição sem fim nas emissoras de
televisão dos sermões de seu pastor,
fez um discurso chamado de histórico por quase todos os jornais americanos ("The Speech", "O discurso",
como passou a ser chamado). Alguns
o compararam a Roosevelt, Kennedy
e Martin Luther King, cujo assassinato covarde completa 40 anos, agora,
sexta-feira. Mas alguns analistas,
aqui e nos EUA, viram no discurso de
Obama uma capitulação. Na visão deles, o candidato tentou o tempo inteiro vender uma imagem de uma Amé-
rica pós-racial, mas, diante do estrago político que os sermões representavam, Obama teve de fazer uma
meia-volta e admitir que "a questão
da raça não pode ser ignorada por este país no momento que vivemos".
Não foi Obama quem disse na convenção democrata de 2004 que não
existe uma América negra, uma América branca, uma América hispânica,
uma América asiática, mas apenas os
Estados Unidos da América? Como,
então, ele vem agora dizer que a questão da raça não pode ser ignorada?
Quando li esses questionamentos,
fiquei surpreso. Em "A audácia da
esperança", escrito em 2005, bem
antes da campanha, Obama diz textualmente: "Dizer que somos um só
povo não é sugerir que raça não é
mais um problema, que a luta por
igualdade está ganha ou que os problemas que as minorias enfrentam
neste país são em grande parte culpa delas próprias."
Não houve recuo, não houve mudança de tom, muito menos altera-
ção de pensamento. Quem ler seus
dois livros poderá perceber claramente que neles, sem tirar nem pôr,
já estão contidas todas as idéias que
ele expôs no discurso.
O longo trecho que abre este artigo mostra que tudo começou a tomar
forma muito tempo atrás.
No início do ano, escrevi que a candidatura Obama já representou para
os EUA e para o mundo "um passo
adiante no processo civilizatório, um
tijolo na construção de uma humanidade em que cor e raça não representem nada". Alguns interpretaram como excesso de entusiasmo, como se
eu tivesse querido dizer que a trama
racial nos EUA tinha chegado ao fim.
Não, essa trama não tem fim, mas a
história avançou muito, e a melhor
prova disso é a candidatura Obama,
seja qual for o destino dela.