"O discurso", O Globo, 01/04/2008 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O discurso", O Globo, 01/04/2008

Barack Obama tinha menos de 20 anos quando fez o seu primeiro discurso. Ele estava num período difícil, tentando formar o seu caráter em meio a um conflito de identidade: externamente, comportava-se como um radical do movimento negro, mas, por dentro, não conseguia adaptar-se com sinceridade ao papel, certamente porque, ao contrário dos brothers esisters, fora criado por mãe e avós brancos. No livro "Sonhos vindos do meu pai", escrito entre 1992 e 1995, muito antes de se tornar político, ele conta como uma amiga, Regina, foi fundamental para que ele se sentisse mais confortável consigo mesmo. Ao saber que o nome dele era Barack, e não Barry, como o chamavam, Regina o estimulou a adotar o nome verdadeiro, um pequeno movimento em busca de uma vida sem tantos disfarces.

Certo dia, ainda quando estudava na Occidental College, ele fez parte de um protesto contra o Apartheid. Pediram que Obama atuasse numa encenação: ele começaria um discurso e, em seguida, seria interrompido por dois estudantes brancos uniformizados como policiais (com o intuito de simbolizar as atrocidades na África do Sul). Acontece que, ao sentar-se para escrever, descobriu o poder das palavras e sentiu que poderia ir além de simplesmente provar a sua ortodoxia política. Ele mesmo conta como tudo aconteceu:

"Eu subi ao microfone: 'Há uma luta sendo travada', eu disse. Minha voz mal chegava além das primeiras fileiras. Umas poucas pessoas prestaram atenção, e eu aguardei a multidão se aquietar. 'Há uma luta sendo travada. Ela está ocorrendo a um oceano de distância. Mas é uma luta que toca todos e cada um de nós. Mesmo se soubermos disso ou não. Mesmo se nós quisermos ou não. Uma luta que exige escolhas. Não uma luta entre negros e brancos. Não uma luta entre ricos e pobres. Não, é uma escolha mais difícil que essa. É uma escolha entre dignidade e servidão. Entre o que é justo e o que é injusto. Entre engajamento e indiferen- ça. Uma escolha entre o certo e o errado.' Eu parei. A multidão estava quieta agora, me observando. Alguém começou a aplaudir. 'Vai fundo, Barack', alguém gritou. 'Continue nesta pegada.' Depois, os outros começaram a aplaudir, a me saudar, e eu soube que eu os tinha, que a conexão havia sido estabelecida. Eu peguei o microfone, pronto para continuar, quando senti a mão de alguém me agarrando por trás. Era exatamente o que tínhamos planejado. (...) Eu tinha que agir como se estivesse tentando me livrar, mas uma parte de mim não estava representando. (...) Eu tinha tanto mais a dizer."

O episódio desagradou ao universitário Obama, ele achou a representação falsa, queria falar mais, mas, ao mesmo tempo, temeu que estivesse apenas à procura do aplauso fácil. Obama acabou discutindo rispidamente com Regina, mais madura, mas a discussão, no fim das contas, levou-o a refletir: "Minha identidade pode começar com a minha raça, mas não se completa, não pode se completar com ela. Ao menos, foi nisso que escolhi acreditar."

A que vem todo esse relato? No iní- cio de março, começaram a vir à tona sermões antigos do pastor Jeremiah Whright, da Igreja de Cristo Trindade Unida, que Obama freqüenta há anos. As palavras do pastor são abominá- veis: chama o país de Estados Unidos da Ku Klux Klan, afirma que é mentira que os japoneses tenham bombardeado Pearl Harbor de surpresa e diz que o 11 de Setembro foi o resultado dos genocídios que os americanos perpetraram no exterior.

Quando Obama se viu acuado pela repetição sem fim nas emissoras de televisão dos sermões de seu pastor, fez um discurso chamado de histórico por quase todos os jornais americanos ("The Speech", "O discurso", como passou a ser chamado). Alguns o compararam a Roosevelt, Kennedy e Martin Luther King, cujo assassinato covarde completa 40 anos, agora, sexta-feira. Mas alguns analistas, aqui e nos EUA, viram no discurso de Obama uma capitulação. Na visão deles, o candidato tentou o tempo inteiro vender uma imagem de uma Amé- rica pós-racial, mas, diante do estrago político que os sermões representavam, Obama teve de fazer uma meia-volta e admitir que "a questão da raça não pode ser ignorada por este país no momento que vivemos".

Não foi Obama quem disse na convenção democrata de 2004 que não existe uma América negra, uma América branca, uma América hispânica, uma América asiática, mas apenas os Estados Unidos da América? Como, então, ele vem agora dizer que a questão da raça não pode ser ignorada? Quando li esses questionamentos, fiquei surpreso. Em "A audácia da esperança", escrito em 2005, bem antes da campanha, Obama diz textualmente: "Dizer que somos um só povo não é sugerir que raça não é mais um problema, que a luta por igualdade está ganha ou que os problemas que as minorias enfrentam neste país são em grande parte culpa delas próprias."

Não houve recuo, não houve mudança de tom, muito menos altera- ção de pensamento. Quem ler seus dois livros poderá perceber claramente que neles, sem tirar nem pôr, já estão contidas todas as idéias que ele expôs no discurso.

O longo trecho que abre este artigo mostra que tudo começou a tomar forma muito tempo atrás.

No início do ano, escrevi que a candidatura Obama já representou para os EUA e para o mundo "um passo adiante no processo civilizatório, um tijolo na construção de uma humanidade em que cor e raça não representem nada". Alguns interpretaram como excesso de entusiasmo, como se eu tivesse querido dizer que a trama racial nos EUA tinha chegado ao fim.

Não, essa trama não tem fim, mas a história avançou muito, e a melhor prova disso é a candidatura Obama, seja qual for o destino dela.