Cláudio Duarte
Em 1999, o Brasil ficou perplexo, e deprimido, com a crise
que culminou na desvaloriza-
ção do real. A inflação voltaria, com ela a miséria, os ganhos do
Plano Real desapareceriam e tudo
não teria passado de ilusão: estaríamos fadados a ser um país de planos
mirabolantes e eleitoreiros, de curta
duração. Como deflagradores da crise, fatores externos (as crises da Ásia
e da Rússia e a especulação estrangeira contra a nossa moeda) e fatores
internos (o erro do governo, visto a
posteriori como crasso, de insistir
em manter sobrevalorizado o real,
com o câmbio rígido e engessado).
O governo, no entanto, após os primeiros dias de confusão, enfrentou o
problema, nomeou Armínio Fraga para a presidência do Banco Central e o
câmbio flutuante foi adotado. A crise
foi superada. Apenas dez meses depois, os mesmos que tinham decretado o fim do país aplaudiam a capacidade do governo de superar o terremoto. A popularidade de FH, que fora
ao chão, mais uma vez recuperou-se.
Hoje, o Brasil vive perplexidade
igual. De uma hora para outra, somos
informados de que a energia está
prestes a acabar e que devemos racioná-la, sob pena de enfrentarmos
um cruel apagão. Hoje, quase todos
decretam: o Brasil, que cresceria
4,5%, nada crescerá, o consumo sofrerá brutal retração, a indústria e o
comércio terão de demitir, a crise terá a duração de, no mínimo, três
anos. FH mais uma vez estaria no
chão e, dali, vaticinam, não mais se
erguerá. Como deflagradores da crise, novamente fatores externos ao
governo (a maior estiagem em 70
anos, levando os reservatórios das
hidroelétricas a quase secarem) e fatores internos (o monstruoso erro do
governo de não ter investido o suficiente em fontes alternativas, como
as termoelétricas, para fazer frente
ao crescente consumo de energia).
Não, não vou dizer que tudo acabará bem, que o governo saberá ultrapassar os problemas e que, ao final,
será até aplaudido pela forma competente como nos livrou do sufoco. Não
sou adivinho, ainda mais quando se
tem que contar com o imponderável,
as chuvas. O que digo apenas é que
não, esta não é a crise final do governo FH, que decretará o seu fim e determinará a vitória da oposição em
2002. Já vimos filme parecido e o governo soube dar a volta por cima.
Porque o eleitorado tem dado mostras de que amadureceu: sabe avaliar
bem o que acontece, sabe separar a
crítica justa da mera exploração polí-
tica. Se o governo conseguir fazer o
país atravessar, sem sobressaltos ainda maiores, a escassez de energia, tudo de fato talvez volte ao seu lugar. O
governo precisará mostrar que há na
crise um componente de tragédia natural (desde a Idade da Pedra o homem tenta, mas não consegue, fazer
chover). Terá que mostrar também
que os entraves iniciais ao maior investimento no setor foram superados. Terá de explicar que as termoelétricas estão fazendo falta, mas que
não são a panacéia contra apagões,
mas um complemento: não se pode
pensar que elas sejam nosso seguro
total contra estiagens, pois, se fossem, em períodos normais de chuvas,
haveria um enorme desperdício de
energia. Bem, se conseguir fazer isso
tudo, talvez o eleitor entenda que,
sim, governar é também saber gerenciar crises.
Porque o eleitorado parece ter percebido que, para adversários, o governo é sempre culpado, esteja ele
certo ou errado. Querem ver?
Imagine que o presidente tivesse
sido competentemente avisado da
gravidade da crise no ano passado.
Suponhamos que já em outubro tivesse sido avisado de que se não
chovesse como chove todos os anos
(há 70 anos), o racionamento seria
inevitável. Suponhamos então que,
para evitar um racionamento tão
grande como o de agora, o presidente tivesse adotado um plano de redu-
ção do consumo um pouco mais
brando, mas já na primavera, num calorão. Agora, suponha que, como
acontecia havia 70 anos, tivesse havido chuvas abundantes, de forma a
encher os reservatórios. O que estariam dizendo hoje do presidente?
Que ele é um tolo, que submeteu o
país a um racionamento indevido,
que arrasou a indústria de linha
branca (geladeiras, freezers e aparelhos de ar-condicionado) justamente
antes do Natal. E tudo por quê? Por
temer uma estiagem que nunca acontece. O governo é sempre culpado.
Exagero? Então imagine que no iní-
cio do ano 2000, ou ainda mais remotamente, temendo também uma estiagem que ninguém pode prever, o
governo tivesse, a toque de caixa, retirado todos os entraves que impediam a construção de termoelétricas.
Imagine que tivesse proposto uma legislação ambiental menos rígida
(sim, o Ministério Público tem embargado diversas obras por ferir a legislação). Ou imagine que tivesse decidido em dias a questão cambial do
gás da Bolívia, matéria-prima essencial para as usinas (os investidores
não querem assumir o risco de um
aumento na taxa do dólar, querem
que o governo absorva este risco).
Imagine que, em conseqüência, centenas de termoelétricas tivessem sido construídas. Agora, novamente,
imagine que, como é natural, como é
rotineiro, tivesse chovido abundantemente. O que diriam? Certamente,
que o governo fora irresponsável ao
flexibilizar a legislação para constru-
ção de termoelétricas, que, diriam,
eram uma opção sem sentido, num
país com recursos hídricos infindá-
veis como o nosso. Diriam que certamente a questão do gás da Bolívia fora decidida apressadamente para saciar o apetite de investidores estrangeiros contra os verdadeiros interesses nacionais. E, certamente, estaríamos vendo hoje o PT clamar pela CPI
das Termoelétricas. O governo é
sempre culpado.
Mas o eleitorado já aprendeu que
tudo é questão de ponto de vista.
Mesmo a indefinição das regras do
racionamento, com as idas e vindas
do governo, que hoje são vistas por
muitos como sinal de fraqueza e inoperância, talvez seja apenas fruto do
ambiente democrático em que vivemos. No fundo, muitos ainda têm
uma alma autoritária e acreditam na
existência de um governo onisciente
e onipotente, que tudo sabe e tudo
resolve. O que há de anormal quando
o governo propõe regras, a sociedade analisa, faz a crítica, contrapropõe e o governo muda a decisão? Isto
não é defeito; é virtude, possível porque vivemos numa democracia.
Enfim, o eleitor aprendeu que nem
o governo é santo nem é demônio.
Nem está totalmente certo, nem totalmente errado. E nunca está irremediavelmente no chão. Porque, como o presidente, que ao tomar posse
disse que não seria o gerente da crise, também aprendeu que esta talvez
seja uma das tarefas mais importantes de um governo.