O
ano que passou foi especialmente indutor de uma discussão que precisa ser enfrentada: o jornalismo é um campo
de batalha de ideologias ou é uma forma
de conhecimento da realidade? Já com alguma distância das eleições, que acirraram esse debate, a discussão pode ser
travada com menos paixão.
No calor daqueles dias, pairou a idéia
de que só existe jornalismo de tendências, uma imprensa de direita e uma imprensa de esquerda, uma tentando mais
do que a outra impor as suas idéias. Não
estavam em questão apenas os editoriais,
mas o fazer jornalístico propriamente dito: a produção de notícias. O jornalismo
estaria condenado a ser um campo de batalha de ideologias, estaria a reboque delas ou, pior, a serviço delas. Os jornais
(impressos, digitais, radiofônicos ou televisivos) seriam feitos de acordo com os
valores de seus donos e dos jornalistas
que para eles trabalham. Para provar o
que seria o óbvio, os partidários dessa tese lançavam mão de postulados filosóficos como se fossem platitudes: a verdade
é inalcançável, isenção é uma utopia, não
existe objetividade total. Assim, os jornais
seriam feitos segundo as suas verdades e
de acordo com os interesses de seu grupo. Os fatos seriam escolhidos, não por
critérios de relevância mais ou menos reconhecidos por qualquer bom profissional, mas conforme os valores de quem escolhe. E ganhariam pouco ou grande destaque, seriam narrados e analisados dessa ou daquela maneira, segundo aqueles
mesmos valores. Como quem pensa assim não se permite dizer "e o público que
se dane", o remédio sugerido por eles seria de uma simplicidade atroz: basta que
o público conheça claramente a posição
de cada jornal para que escolha aquele
que melhor representa sua verdade.
Ocorre que, se fosse assim, não existiria jornalismo, mas apenas publicidade. O
objetivo dos jornais seria a cotidiana busca de adeptos de uma determinada visão
do mundo. Fariam, então, propaganda;
propaganda política, mas propaganda.
E os jornais estariam mortos ou definhando. A sociedade não teria como se
mexer, como andar: se não há verdade, se
só há um relato de esquerda e outro de
direita, como falar em fatos? Viveríamos
numa sociedade sem referencial, num
mundo de versões.
Nada disso. O jornalismo é uma forma
de conhecimento, de apreensão da realidade, segundo um método próprio que,
se seguido corretamente (e não são muitos os veículos que se esforçam por segui-lo), leva ao relato e à análise dos fatos
com fidelidade. Muitos pensadores brasileiros pensam assim, mas, aqui, não quero citá-los, porque, embora concordemos
com esse postulado geral, a partir dele os
caminhos são bem diversos (e, assim,
não quero correr o risco de que o leitor
pense que me apóio na autoridade deles
para corroborar o que aqui escrevo).
Diante de uma miríade de acontecimentos, os jornalistas são treinados para
discernir que fatos têm relevância e narrálos e analisá-los de maneira lógica e isenta. Isso implica acolher na análise os diversos pontos de vista, pois a pluralidade
é regra geral em tudo o que se faz em jornalismo, inclusive nas páginas de artigos,
que devem espelhar as tendências da sociedade. Opinião própria, apenas nos editoriais e sem repercussão no noticiário.
Pode haver, portanto, jornais de esquerda
e de direita, mas no que se refere a suas
opiniões expressas em editoriais, jamais
contaminando o noticiário, em nenhuma
hipótese influenciando o que deve ou não
ser noticiado. Como toda obra humana, o
jornalismo está também sujeito ao erro, e
erra em quantidade. A regra é a transparência: reconhecer o erro e corrigi-lo.
A prova dos nove de que isso é possível é a comparação entre jornais diferentes. Se compararmos o "Los Angeles Times", o "Washington Post" e o "New York
Times", que têm linhas editoriais muito
distintas, notaremos com facilidade que é
muito parecida a cesta de assuntos oferecida aos leitores. Se excluirmos os assuntos locais, a mesma comparação pode ser
feita entre os três americanos e o "El
País", da Espanha, o "La Repubblica", da
Itália, e o "Daily Telegraph", do Reino Unido: a coincidência também será grande.
No Brasil, o leitor pode verificar que "Folha de S.Paulo", "Estado de S. Paulo" e O
GLOBO, jornais com poucas afinidades e
concorrentes ferozes, destacam sempre
mais ou menos os mesmos assuntos. Não
é falta de criatividade: é que os jornalistas
que neles trabalham, profissionais treinados, sabem reconhecer num enxame de
fatos o que é relevante e o que não é.
Mesmo o chamado jornalismo de opinião, em que o jornal ou a revista noticia
os fatos, opinando todo o tempo sobre
eles, se bem-feito, não se confunde com o
que chamei de publicidade. Porque, neste
caso, os veículos devem procurar ser
isentos e plurais no relato e análise dos
acontecimentos, mesmo que ofereçam ao
leitor, ao lado da informação, o seu próprio ponto de vista.
Sim, se nem a ciência consegue alcançar a verdade e a objetividade total, como
o jornalismo faria essa mágica? Não faz.
Como a ciência, o jornalismo é uma aproximação da realidade, mas a melhor que
se pode obter naquele instante com o instrumental disponível. É certo que um episódio — o apagão aéreo, por exemplo —
daqui a 50 anos vai ser contado e analisado por historiadores com acesso a um
material que os jornalistas não conhecem
hoje: documentos secretos, atas de reuniões, depoimento dos envolvidos dado
muito tempo depois. Daí emergirá um relato mais acurado do que o que os jornais
conseguem fazer hoje. Mas os próprios
jornais serão usados como fonte da História porque eles conseguem o que historiador algum será capaz de fazer sem eles:
capturar o sentimento de uma época. A
manchete "gritada" sobre o apagão é ela
própria, em sua forma, uma informação:
dá conta da perplexidade que a sociedade
vive naquele instante. A diagramação do
jornal, a hierarquização das notícias, as
fotos, são todos eles recursos que informam. Que ajudam a conhecer a realidade.
E são próprios apenas ao jornalismo.
Como obter o máximo de objetividade
e isenção em jornalismo é o que pretendo
discutir no meu próximo artigo.