"Maus" é uma história
em quadrinhos genial
de Art Spiegelman sobre a vida de um sobrevivente do holocausto, agora editada em livro no Brasil. Logo no início, o filho desse sobrevivente, já
nascido no pós-guerra e morando
nos EUA, chega choroso junto ao pai.
Tinha caído ao chão numa brincadeira de correr e fora abandonado pelos
amigos. O pai, com o realismo herdado dos horrores da Segunda Guerra,
resmunga, com o sotaque carregado
de um velho judeu vindo da Polônia:
"Amigos? Seus amigos? Se trancar
eles em quarto sem comida por uma
semana aí ia ver o que é amigo!"
Li esse livro ainda sob o impacto
do furação Katrina, espantado com
as cenas de selvageria, com roubos,
pilhagens, assassinatos e estupros. A
civilização é algo muito frágil, disseme um amigo. É verdade, ela desaba
junto com um vendaval. Ali onde o
Estado desapareceu a lei da selva imperou. Hobbes tinha razão. O curioso
é que, a despeito da justeza das crí-
ticas à demora no socorro às vítimas
do Katrina, o mundo inteiro demonstrou que acredita num mito: uma na-
ção, supostamente dirigida por super-homens, capaz de vencer a natureza, transformando o caos numa catástrofe limpa, ordeira, asséptica. Isso é impossível, apenas uma fantasia.
Catástrofes geram mortes, mutila-
ções, mau cheiro, fome, dor, sede,
medo, angústia. O que vimos na televisão era o esperado: os mortos não
se desesperam nunca, o desespero é
sempre dos vivos. Quem sobrevive
grita e chora. Alguns, regridem ao estado de selvageria.
Ouvi de mais de uma pessoa que
tudo isso era a evidência de que o
mundo piorou. A tsunami do início
do ano, o Katrina, uma sucessão de
guerras recentes, atentados terroristas em toda parte, o aquecimento
global, uma multidão de pobres e miseráveis ocupando dois terços do
planeta, florestas devastadas, tudo
isso seria a prova de que chegamos
ao fim do poço. Bobagem, o fim do
poço não existe porque nunca saí-
mos dele. O mundo está igual.
Da Idade da Pedra aos dias de hoje,
a humanidade jamais experimentou
períodos longos de paz, tranqüilidade, prosperidade e solidariedade. Se,
hoje, o Homo sapiens sapiens é soberano, o motivo é um só: ao fim de um
longo processo, o mais evoluído conseguiu sempre exterminar todos os
concorrentes que lhe foram contemporâneos; a evolução não foi uma linha reta, uns vindo antes dos outros;
a convivência resultou sempre na vitória do mais bem equipado.
Da mesma forma, desde que a História passou a ser registrada, não houve um período grande sequer sem
uma grande guerra, um grande extermínio. Olhar para trás é constatar que
"paz" é uma palavra que só constou do
nosso vocabulário como ideal. Se o leitor fizer o exercício de pensar nas
guerras, partindo de hoje para o passado, verá que há uma sucessão semfim, uma mais dantesca do que a outra.
Morrer num campo de batalha na Idade Antiga era tão terrível como morrer
hoje no Iraque. A diferença é que, antes, líamos os relatos a partir da pena
de um poeta e, hoje, assistimos ao vivo
pela TV. É certo que, individualmente,
existe uma imensidão de homens de
boa vontade, solidários, justos, amantes da paz, mas, no conjunto, o retrato
da humanidade é cru.
A comunhão com a natureza também nunca passou de quimera. Na
Pré-História, corríamos de nossas
presas até que arrumamos um jeito
de fazê-las trocar de papel conosco.
Ao longo dos séculos, devastamos
todas as florestas que encontramos
pelo caminho, na Europa, na Ásia, na
América do Norte. A própria idealiza-
ção da Natureza não passa disso:
uma idealização. Um bicho come o
outro, um bicho extermina o outro, e
chamamos isso por um nome mais
palatável: cadeia alimentar.
E Deus sabe disso melhor do que
ninguém, claro. Desde que a Abraão
foi revelado o Deus-Único, o que lemos é uma seqüência de conflitos,
mortes, destruição, sofrimentos atrozes: 40 anos no deserto, nações passadas ao fio da espada, e a nossa paz
e a nossa felicidade sempre adiadas.
Jesus veio ao mundo numa comunidade dominada por outra, pregou e,
para nos salvar, acabou crucificado,
morto e ressuscitado: em nome Dele,
perseguimos e fomos perseguidos.
Maomé disse que trazia o último tijolo da Revelação, mas, para espalhá-
la, passou por guerras em vida e viu
seus adeptos se dividirem logo no
momento de sua morte: até hoje, a
paz e a misericórdia são ainda uma
miragem no deserto.
São obviedades que escrevo aqui
talvez como consolo, num momento
em que às mazelas do mundo soma-se,
para nós, a crise política que se abate
sobre o país. Haja estômago para tanta
decepção e para tantos escândalos,
com mensalões e mensalinhos. Mas o
que é a nossa história política senão
uma sucessão de pilhagens do Estado
por aqueles que prometeram redimilo? Uma vez mais, nada mudou, já devíamos estar acostumados.
Mas esse artigo não é pessimista.
Ao contrário. Escrevo apenas para
demonstrar que não há novidade, estamos onde sempre estivemos. A
maioria de nós vive a ilusão de que o
presente é ruim em relação ao passado e que o futuro precisa resgatar o
bem. Não é verdade: meu otimismo
me faz constatar que o passado é
igual ao presente e que o futuro, na
pior das hipóteses, será apenas uma
repetição do hoje. Na hipótese mais
otimista, será melhor.
É essa hipótese que nos mantém
de pé.