"O mundo de Kerry", O Globo, 02/03/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"O mundo de Kerry", O Globo, 02/03/2004

No início de 2003, quando o senador John Kerry se lançou na disputa pela indicação do Partido Democrata, ele era o favorito: vinte anos de experiência política, um liberal, defensor do meio ambiente, dos direitos das mulheres e dos gays, a favor de uma reforma na educação, de uma previdência custeada pelo Estado, de melhorias no sistema de saúde e, ainda por cima, herói da Guerra do Vietnã. Um contraponto ideal a Bush, sempre acusado de fazer guerra sem nunca ter lutado num campo de batalha. Mas Kerry tinha um calcanhar-de-aquiles: em 11/10/2002, ele votara a favor da resolução que dava a Bush o poder de atacar o Iraque. Para os ativistas contra Bush, era um pecado mortal. Em agosto passado, com uma feroz retó- rica contra a guerra, Howard Dean, ex-governador de Vermont, deixou Kerry para trás e ganhou a dianteira na mídia. Os jovens do Partido Democrata lotavam os pré-comícios de Dean: "Este é o homem, porque este é o anti-Bush, é o antiguerra." Os cofres de Dean se encheram e seu favoritismo parecia inquestionável.

Outros dois pré-candidatos democratas tinham também votado a favor da resolução pró-guerra, os senadores John Edwards e Joe Lieberman. Mas eles eram considerados cartas fora do baralho. Edwards, por sua inexperiência (está apenas no primeiro mandato), e Lieberman, por ser conservador demais (acha positivo o fervor religioso de Bush, por exemplo). A preocupação era Kerry e, para mantê-lo fora da disputa, os seus oponentes batiam na mesma tecla: votou a favor da guerra. Não sabiam o mal que estavam fazendo a si. Isso obrigava o próprio Kerry, a contragosto, a se explicar a respeito. Também não imaginava o bem que estava fazendo a si mesmo. Esqueciam-se de que o irrestrito apoio dos americanos à guerra não era apenas uma patriotada, mas uma crença de que uma guerra contra o terror precisava ser travada. Uma crença de democratas e republicanos. Foi nesse contexto que Kerry, a cada ataque e a cada explicação, foi mostrando aos democratas, sem saber, que ele era o homem ideal: liberal, sim, mas firme em sua posição a favor da guerra contra o terror. Não com os métodos de Bush, mas com semelhanças.

Vale a pena visitar um dos discursos de Kerry, feito no dia em que Saddam foi preso, em resposta aos ataques de Dean, então ainda na frente. O trecho é longo, mas fundamental para saber quem é Kerry: "Ninguém pode duvidar de que estamos mais seguros — e que o Iraque está melhor — porque Saddam está atrás das grades. (...) Sua captura nos mostra por que jamais devemos desistir de ter a mais poderosa força militar do mundo. (...) Mas, hoje, enfrentamos um duplo perigo. De um lado, nós temos o presidente Bush, que jogou a América no rumo do unilateralismo. De outro, estão aqueles do meu pró- prio partido, que ameaçam nos levar para o rumo da confusão e da retirada militar. (...) O governador Dean disse que só deveríamos ter ido à guerra contra o Iraque com autorização da ONU. Isso é um mal-entendido fundamental sobre como um presidente protege os Estados Unidos. (...)" "Howard Dean permitir um veto sobre quando a América pode ou não pode agir é mais do que um pretexto para nada fazer: é ceder para outros o dever presidencial de defender a América, um perigo profundo para a nossa segurança nacional e a estabilidade do mundo. (...) É falsa a escolha entre força sem diplomacia e diplomacia sem força."

Isso explica em grande parte a volta por cima de Kerry: os democratas não queriam um antiguerra, mas alguém que a faça com mais jeito, com mais tato. Evidentemente, Kerry trata de estabelecer diferenças com Bush: atacar o unilateralismo é o principal ponto. Mas, no mesmo discurso citado acima, Kerry é capaz de enumerar todos os feitos militares de presidentes democratas no século XX, e completar: "E nenhum deles jamais teria dado a outros o poder de impedir que a América defendesse os seus interesses ou ideais." Kerry acusa Bush de ter sido incompetente ao não conseguir o apoio internacional para a guerra e se precipitado ao não dar mais tempo aos inspetores, o que poderia ter impedido o conflito. Ele também critica toda a política de Bush no pós-guerra. Mas uma análise mais atenta de suas propostas para o Iraque é capaz de apontar nuances que o aproximam de Bush. Ele prevê a transferência de poder, primeiro para a ONU e, depois, para os iraquianos. Mas, ao mesmo tempo, adverte que isso não será feito da noite para o dia e que o governo americano de ocupa- ção terá um importante papel nessa mudança. Algo que não difere muito do que Bush quer fazer. E promete aumentar o efetivo do Exército em 40 mil homens, "para dar conta das necessidades de um novo século e da nova guerra global contra o terror". A real diferença diz respeito a tentar romper com o unilateralismo de Bush. Kerry diz que proporá que os europeus mandem tropas mas, como não acredita em milagre, em troca oferecerá participação nos milionários contratos de reconstrução do Iraque.

Como ele só tomará posse em janeiro de 2005 talvez só necessite aumentar os quadros do exército. Porque os planos de Bush para o Iraque, com o apoio da ONU, prevêem para 30 de junho próximo a transferência de poder para um governo iraquiano eleito indiretamente e eleições livres para o início de 2005. Até lá, promete acelerar a reconstrução do Iraque, constituir uma força policial iraquiana bem treinada para combater os terroristas. Bush sabe que a sua reeleição depende em grande parte disso. Vai se esforçar para ter êxito. Se fracassar, Kerry assume o seu lugar, com planos parecidos, e livre para ter apoio internacional. Nas duas hipóteses, sairá ganhando o Iraque livre.

Pelo menos em relação ao Iraque, Kerry não é uma mudança. Não pode ser. A segurança dos EUA não permite. Com Kerry ou sem Kerry, os americanos não deixarão de ser o alvo da al-Qaeda. É mais ou menos como o que aconteceu no Brasil. A campanha prometia mudanças e mudan- ças na política econômica, mas o que se viu foi continuidade. Para o bem de todos. Lá também será assim.