No início de 2003, quando o
senador John Kerry se lançou
na disputa pela indicação do
Partido Democrata, ele era o
favorito: vinte anos de experiência política, um liberal, defensor do meio ambiente, dos
direitos das mulheres e dos
gays, a favor de uma reforma
na educação, de uma previdência custeada pelo Estado, de
melhorias no sistema de saúde
e, ainda por cima, herói da
Guerra do Vietnã. Um contraponto ideal a Bush, sempre
acusado de fazer guerra sem
nunca ter lutado num campo
de batalha. Mas Kerry tinha
um calcanhar-de-aquiles: em
11/10/2002, ele votara a favor
da resolução que dava a Bush
o poder de atacar o Iraque. Para os ativistas contra Bush, era
um pecado mortal. Em agosto
passado, com uma feroz retó-
rica contra a guerra, Howard
Dean, ex-governador de Vermont, deixou Kerry para trás e
ganhou a dianteira na mídia.
Os jovens do Partido Democrata lotavam os pré-comícios de
Dean: "Este é o homem, porque este é o anti-Bush, é o antiguerra." Os cofres de Dean se
encheram e seu favoritismo
parecia inquestionável.
Outros dois pré-candidatos
democratas tinham também
votado a favor da resolução
pró-guerra, os senadores John
Edwards e Joe Lieberman. Mas
eles eram considerados cartas
fora do baralho. Edwards, por
sua inexperiência (está apenas
no primeiro mandato), e Lieberman, por ser conservador
demais (acha positivo o fervor
religioso de Bush, por exemplo). A preocupação era Kerry
e, para mantê-lo fora da disputa, os seus oponentes batiam
na mesma tecla: votou a favor
da guerra. Não sabiam o mal
que estavam fazendo a si. Isso
obrigava o próprio Kerry, a
contragosto, a se explicar a
respeito. Também não imaginava o bem que estava fazendo
a si mesmo. Esqueciam-se de
que o irrestrito apoio dos americanos à guerra não era apenas uma patriotada, mas uma
crença de que uma guerra contra o terror precisava ser travada. Uma crença de democratas
e republicanos. Foi nesse contexto que Kerry, a cada ataque
e a cada explicação, foi mostrando aos democratas, sem
saber, que ele era o homem
ideal: liberal, sim, mas firme
em sua posição a favor da
guerra contra o terror. Não
com os métodos de Bush, mas
com semelhanças.
Vale a pena visitar um dos
discursos de Kerry, feito no dia
em que Saddam foi preso, em
resposta aos ataques de Dean,
então ainda na frente. O trecho
é longo, mas fundamental para
saber quem é Kerry: "Ninguém
pode duvidar de que estamos
mais seguros — e que o Iraque
está melhor — porque Saddam
está atrás das grades. (...) Sua
captura nos mostra por que jamais devemos desistir de ter a
mais poderosa força militar do
mundo. (...) Mas, hoje, enfrentamos um duplo perigo. De um
lado, nós temos o presidente
Bush, que jogou a América no
rumo do unilateralismo. De outro, estão aqueles do meu pró-
prio partido, que ameaçam
nos levar para o rumo da confusão e da retirada militar. (...)
O governador Dean disse que
só deveríamos ter ido à guerra
contra o Iraque com autorização da ONU. Isso é um mal-entendido fundamental sobre como um presidente protege os
Estados Unidos. (...)" "Howard
Dean permitir um veto sobre
quando a América pode ou
não pode agir é mais do que
um pretexto para nada fazer: é
ceder para outros o dever presidencial de defender a América, um perigo profundo para a
nossa segurança nacional e a
estabilidade do mundo. (...) É
falsa a escolha entre força sem
diplomacia e diplomacia sem
força."
Isso explica em grande parte a volta por cima de Kerry:
os democratas não queriam
um antiguerra, mas alguém
que a faça com mais jeito,
com mais tato. Evidentemente, Kerry trata de estabelecer
diferenças com Bush: atacar
o unilateralismo é o principal
ponto. Mas, no mesmo discurso citado acima, Kerry é
capaz de enumerar todos os
feitos militares de presidentes democratas no século XX,
e completar: "E nenhum deles jamais teria dado a outros
o poder de impedir que a
América defendesse os seus
interesses ou ideais." Kerry
acusa Bush de ter sido incompetente ao não conseguir
o apoio internacional para a
guerra e se precipitado ao
não dar mais tempo aos inspetores, o que poderia ter impedido o conflito. Ele também critica toda a política de
Bush no pós-guerra. Mas uma
análise mais atenta de suas
propostas para o Iraque é capaz de apontar nuances que
o aproximam de Bush. Ele
prevê a transferência de poder, primeiro para a ONU e,
depois, para os iraquianos.
Mas, ao mesmo tempo, adverte que isso não será feito
da noite para o dia e que o governo americano de ocupa-
ção terá um importante papel
nessa mudança. Algo que não
difere muito do que Bush
quer fazer. E promete aumentar o efetivo do Exército em
40 mil homens, "para dar conta das necessidades de um
novo século e da nova guerra
global contra o terror". A real
diferença diz respeito a tentar romper com o unilateralismo de Bush. Kerry diz que
proporá que os europeus
mandem tropas mas, como
não acredita em milagre, em
troca oferecerá participação
nos milionários contratos de
reconstrução do Iraque.
Como ele só tomará posse
em janeiro de 2005 talvez só
necessite aumentar os quadros do exército. Porque os
planos de Bush para o Iraque,
com o apoio da ONU, prevêem
para 30 de junho próximo a
transferência de poder para
um governo iraquiano eleito
indiretamente e eleições livres para o início de 2005. Até
lá, promete acelerar a reconstrução do Iraque, constituir
uma força policial iraquiana
bem treinada para combater
os terroristas. Bush sabe que
a sua reeleição depende em
grande parte disso. Vai se esforçar para ter êxito. Se fracassar, Kerry assume o seu lugar, com planos parecidos, e
livre para ter apoio internacional. Nas duas hipóteses, sairá
ganhando o Iraque livre.
Pelo menos em relação ao
Iraque, Kerry não é uma mudança. Não pode ser. A segurança dos EUA não permite.
Com Kerry ou sem Kerry, os
americanos não deixarão de
ser o alvo da al-Qaeda. É mais
ou menos como o que aconteceu no Brasil. A campanha
prometia mudanças e mudan-
ças na política econômica,
mas o que se viu foi continuidade. Para o bem de todos.
Lá também será assim.