"O nosso lado", O Globo, 30/10/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O nosso lado", O Globo, 30/10/2003

Quando George W. Bush declarou que a guerra contra o Iraque era parte da guerra contra o terror, publicaram-se muitos artigos indignados. Diziam que a guerra era por petróleo, que Saddam e seu regime nada tinham a ver com a al-Qaeda e que o presidente americano não passava de um idiota, mentiroso, mas idiota. Hoje, depois dos ataques terroristas contra a ONU e a Cruz Vermelha, em vez de fazerem um mea-culpa, os mesmos analistas repetem, cheios de orgulho, uma espécie de "tá vendo, nós avisamos, mostramos o atoleiro em que vocês iriam se meter".

É muita miopia. Miopia compartilhada pela opinião pública e pela elite dirigente da maior parte dos países. A ONU, todos reconhecem, recusou-se, até o fim, a dar o seu aval para a guerra. Os EUA foram derrotados no Conselho de Segurança e decidiram agir por conta pró- pria. Levando em considera- ção esse dado, um atentado contra a ONU não faria sentido se não fosse entendido como um recado do terror para o mundo. Mas, para os porta-vozes de uma posição antiamericana, cegos, nunca dispostos a dar o braço a torcer, foi fácil encontrar uma justificativa para o injustificável: o embargo de 12 anos contra o Iraque, patrocinado pela ONU, seria a raiz da atrocidade. Talvez inconformados com o "mal-entendido", os terroristas decidiram dar um recado ainda mais claro ao mundo: atacar a Cruz Vermelha, uma entidade que está no Iraque desde 1983, ajudando o país a superar todas as mazelas provocadas pelo regime de Saddam (a guerra de oito anos com o Irã, a primeira guerra do Golfo, o embargo da ONU, sempre com uma postura de absoluta neutralidade). Como explicá-lo?

Não há outra maneira senão interpretá-lo como uma mensagem explícita do terror contra a parte do mundo que pensa com a cabeça, defende os princípios mais nobres da Humanidade e consegue conviver com as diferenças: "Nós estamos contra vocês, nossa verdade é única e vamos impô-la ao mundo, porque nós temos uma linha direta com Deus". Mas, para os que teimam em não ver, a coisa não é bem assim: o atentado teria visado tão somente a desmoralizar as tropas americanas, mostrando que os EUA são incapazes de garantir a paz e a segurança prometidas. Não percebem que, para obter tal objetivo, qualquer atentado serviria, e os alvos americanos e pró-americanos lá são inúmeros. Por que então a Cruz Vermelha?

Por mais antipática que a tese possa ser, a verdade é que, longe de representarem o fiasco americano, os dois atentados mostram que Bush tinha razão. Se, sem um Estado organizado por trás, os homens leais a Saddam são capazes de promover atentados dessa envergadura, o que poderiam fazer ou patrocinar se ainda estivessem no poder? Mas a maior parte das pessoas não quer ver isso. Era de se esperar que as na- ções do mundo que pensa, que é racional, que é capaz de conviver com o diferente, se unissem para dar uma resposta definitiva a esses fanáticos capazes de tudo. Mas o que se vê, ao contrário, é um certo êxtase pelas dificuldades por que os EUA estão hoje passando. Não percebem o desastre que uma derrota americana no Iraque significaria para o mundo, a força que o fanatismo religioso ganharia. Não estão interpretando bem a mensagem, apesar do esfor- ço dos terroristas para se fazerem entender (o fanatismo é tão grande que seria pecado esconder os objetivos). Esses fanáticos não são o Islã, que prega a paz, mas uma parte deformada dele, rechaçada pela maioria dos muçulmanos, porque a parte racional do mundo também mora em Bagdá, em Trípoli, no Cairo, etc.

As analogias com o Vietnã são muitas e muito do agrado dos que buscam explicações fáceis. Mas as diferenças são as que importam: o inimigo ali era ateu, racional e sabedor das próprias limitações. O inimigo hoje acredita que fala com Deus, e que, por isso, os limites são apenas decorrentes de fé insuficiente. Para eles, o apocalipse não é o fim do mundo, mas apenas uma verdade revelada, inescapá- vel, anunciadora do início do Reino dos Céus na Terra. O mundo não se dá conta de que, para o suicida em busca do paraíso, não há diferença entre morrer para matar dezenas ou morrer para matar milhões. A diferença está apenas no poder da bomba com que se explode.

Tempos difíceis os nossos. Se o outro lado conhece bem os seus objetivos, e é capaz de morrer por eles, nós, a parte aparentemente racional do mundo, não percebemos sequer de que lado nós estamos.