sempre assim: "É óbvio que", e dava
a resposta. Tirei boa nota, mas recebi
uma lição extra do meu professor
Wanderley Lopes. "Dizer que uma
coisa é óbvia é chamar o outro de
burro." Nem por um minuto imaginei
que foi esta a intenção de minha amiga brilhante e parceira de profissão
Míriam Leitão. Mas me lembrei do
episódio ao ler ontem, no seu artigo,
a afirmação, em relação ao suposto
racismo do brasileiro: "São muitos os
sinais (...) de que afinal a elite não
quer mais se esconder atrás da nega-
ção do óbvio." Não me senti ofendido, porque sei que foi um jeito automático de falar. Porque todos com alguma afinidade com as ciências e a filosofia sabem, e Míriam sabe como
poucos, que o óbvio não existe. Nada
é simples na vida.
A começar pelos números. Quer
chegar a conclusões próximas da
verdade? Então vá aos números, mas
a todos os números e não apenas
àqueles que são favoráveis à sua tese. Na contestação a meu artigo "Não
somos racistas", Míriam e alguns leitores disseram, citando tabelas do
IBGE, que os negros ganham a metade do que ganham os brancos. Disseram mais ainda: os negros com mesmo nível educacional ganham menos
que os brancos. É verdade? É, mas os
dados não demonstram o racismo.
Porque os números estão incompletos, analisaram-se apenas os dados publicados pelo IBGE na "Síntese
de indicadores sociais, 2002": como o
interesse maior é por brancos, negros e pardos, na brochura, tudo está
restrito a esses segmentos. Mas os números vão muito além. Naquelas
mesmas tabelas, os números relativos àqueles que se denominam amarelos jamais são citados. E eles são
reveladores. No Brasil, os amarelos
ganham o dobro do que ganham os
também autodenominados brancos:
9,2 salários mínimos contra 4,5 dos
brancos (os autodenominados negros e pardos ganham 2,5). Ora, se é
verdadeira a tese de que é por racismo que os negros ganham menos, haverá de ser, em igual medida, também por racismo que os amarelos ganham o dobro do que os brancos. Se
o racismo explica uma coisa, terá de
explicar a outra, elementar princípio
de lógica. E, então, chegaríamos à ridícula
conclusão de que, no
Brasil, os amarelos
oprimem os brancos.
Não, o racismo não
explica nem uma coisa,
nem outra. Porque não
somos racistas, repito.
A explicação se encontra no nível cultural e
na condição econômica
dos diversos segmentos da população. Vejamos: os amarelos estudam, em média, 9,6 anos, os brancos
estudam menos, 8 anos, e os negros,
menos ainda, 5,7 anos. Os amarelos
estudam mais e, por isso, ganham
mais. Nada a ver com a cor. Diante
desses números, mais lógico seria supor que é preciso redistribuir renda,
para que os mais pobres possam melhorar de vida. E aplicar políticas sociais que tenham como alvo os pobres em geral, e não apenas os negros, para que tenham acesso a um
ensino de qualidade. Melhor ensino,
melhor salário. Porque tudo o que se
diz em relação aos negros, pode ser
dito com mais propriedade em rela-
ção aos pobres, sejam brancos, negros, pardos ou amarelos. São os pobres que têm as piores escolas, os
piores salários, os piores serviços.
Negros são maioria entre os pobres
porque o nosso modelo econômico
foi sempre concentrador de renda:
quem foi pobre (e os escravos, por
definição, não tinham posses) esteve
fadado a continuar pobre.
Mas o leitor deve estar se perguntando: como pode um negro com o
mesmo nível educacional ganhar menos do que um branco? Não pode.
Nem as estatísticas dizem isso. O que
elas mostram é que negros, com o
mesmo número de anos na escola
que brancos, ganham menos. Isso
não quer dizer que tenham a mesma condi-
ção educacional. Basta
acompanhar este
exemplo hipotético: um
negro, por ser pobre,
estudou 12 anos, provavelmente em escolas
públicas de baixa qualidade e, se entrar na universidade, não terá outra opção senão estudar em faculdade privada caça-níqueis; o branco, por ter melhores
condições financeiras, estudou também 12 anos, mas fazendo o percurso
inverso, estudou em boas escolas
privadas e cursará a universidade
numa excelente escola pública. A diferença salarial decorre disto e não
do racismo: "Você é negro, pago um
salário menor." Infelizmente, não há
estatística que meça quanto ganham
cidadãos de cores diferentes com
igual qualificação educacional. Da
mesma forma, não é correta a afirma-
ção de que brancos e negros, em fun-
ções iguais, ganhem salários desiguais. O IBGE não mede isso. Não há
tabela mostrando que marceneiros
brancos ganhem mais que marceneiros negros. O que ele faz é estratificar
os segmentos em categorias: com
carteira, sem carteira, domésticos,
militares e estatutários, por conta
própria e empresários. Ou por setores: indústria, comércio, agricultura
etc. Mas nunca por função ou ofício
ou nível hierárquico.
Vejamos o que acontece com militares e estatutários: de fato, negros
ganham R$ 843,51 e brancos, R$
1.201,56. Mas, novamente, é a qualificação educacional que conta para a
diferença, não a cor. Ou alguém imagina que no século XXI, num país republicano como o Brasil, que se orgulha da sua Constituição Cidadã,
um servidor público, civil ou militar,
possa ganhar mais por causa da cor?
Impossível, as carreiras são tabeladas. Ocorre é que quem não tem dinheiro não se gradua em general, por
exemplo, seja branco ou negro. Há,
provavelmente, mais cabos de origem humilde (portanto, mais negros)
do que generais. A ausência de racismo fica mais clara quando se pesquisa uma categoria específica como os
militares, mas sem a possibilidade de
haver diversos níveis educacionais:
os domésticos. Sem diferenças em
anos de estudo, encontramos que a
média salarial de negros é de R$ 203
reais e de brancos, R$ 211, praticamente iguais, portanto.
O debate entre visões diferentes é
sempre saudável. Eu acredito que a
solução não é instituir políticas sociais com base na cor, correndo-se o
risco de fazer o Brasil enfrentar algo
desconhecido por aqui: o ódio racial.
A solução é a continuação de políticas sociais voltadas para os pobres
em geral, brancos, negros, pardos e
amarelos. Se o Brasil mantiver este
caminho, em pouco tempo as estatísticas vão mudar de tom. Sem ódios.