Um livro me atraiu pelo título:
"O fundamentalista relutante", de Mohsin Hamid, um autor paquistanês em seu segundo romance, "formado por Princeton e Harvard, e que trabalhou por
muitos anos como consultor financeiro em Nova York", segundo consta da
orelha do livro. A página do autor na
internet acrescenta que ele também
trabalhou por muito tempo como um
jornalista freelancer em Lahore, no Paquistão, sua cidade natal e que, agora,
vive "principalmente" em Londres.
O livro é uma droga.
Como o autor, o protagonista é um paquistanês de classe média que consegue
estudar em Princeton graças a uma bolsa, é ótimo estudante, tão ótimo que é
escolhido para trabalhar numa das mais
importantes firmas de consultoria financeira de Nova York. Seu nome é Changez.
É muçulmano, mas não tem nada de radical: bebe, não reza, leva uma vida normal, viaja com meninas que fazem topless, tudo como qualquer jovem faria.
Não é um perfil solitário. Mesmo no Paquistão, diz o personagem, onde o álcool
é proibido, bebe-se bem, porque há sempre esquemas para se burlar a lei. Changez era alguém como nós, até ver, pela
televisão, porque estava fora de NY, o
atentado às Torres Gêmeas, em 2001.
E o que acontece? O muçulmano radical que está dentro dele, como uma
espécie de Hulk, começa a se mexer furiosamente e, em vez de lamentar o que
vê pela televisão, dá um sorriso, satisfeito, feliz porque os EUA estão pagando
tudo o que fazem no mundo. Changez deixa a barba crescer e fica ensimesmado até jogar tudo para o alto e voltar para Lahore, onde acaba por se tornar um
professor universitário radical, pregando contra os EUA, a quem ele culpa por
todos os males do mundo.
Mensagem do livrinho? Muçulmanos
são assim mesmo, parecem adaptados,
bebem, namoram, falam inglês sem sotaque, andam de limusine, estudam em
universidades americanas de elite,
mas, de repente, o bichinho do ramram começa a coçar e o cara se transforma num radical. Que belo serviço o
autor presta a milhões de compatriotas
e irmãos de fé, que vivem bem integrados no mundo ocidental, pacificamente, repudiando por completo o seqüestro de sua religião pelos fanáticos. Cada leitor do livro tenderá a vê-los assim: lobos em pele de cordeiro. Um detalhe: vivendo "principalmente em
Londres", o autor faz questão de dizer
que ele não é o seu personagem.
Nem precisava. O que me motivou a
escrever este artigo foram as críticas
ultrafavoráveis que saíram nos EUA.
Para citar apenas uma, o "Washington
Post" pontificou: "Alguns livros são
atos de coragem. Tempos extremos
chamam por reações extremas, por escritas levadas ao extremo. Hamid obteve algo de extraordinário com este romance." É como se admitisse que diante do que nós fazemos ao mundo, nada
mais natural, nobre e legítimo do que
esses caras se voltarem contra nós.
Quem definiu bem a questão foi o comediante britânico Pat Condell. Ele soube que a Comissão da Arábia Saudita pelos Direitos Humanos (sim, essa coisa
existe) iria reclamar junto à União Européia porque, segundo denuncia, os mu-
çulmanos seriam ali impedidos de praticarem livremente a sua fé. Uma reclama-
ção mentirosa e, sobretudo, cínica, vinda
de um país onde não há direitos humanos. Condell declarou: "Numa sociedade
normal, o sujeito que fizesse essa reclamação ia ser posto para fora assim que
abrisse a boca. Mas estamos na Europa
e, em vez disso, nós provavelmente vamos ouvir o que ele tem a dizer, levar tudo em consideração e, depois... mudar o
nosso modo de fazer as coisas."
Ele tem razão. Em "Infiel", Ayaan Hirsi
Ali critica o Islã com acidez, de uma maneira até injusta, porque generalizante.
E faz um elogio emocionado ao modo de
vida ocidental. Sabem o que escreveu o
"New York Times"? Que ela tinha uma
visão idealizada do Ocidente, quase
uma caricatura de doçura e luz. Então
uma ex-muçulmana, que viveu na Somália, na Arábia Saudita e no Quênia até
chegar à Holanda e aos EUA, escreve
um livro para dizer a seus ex-irmãos de
fé que o Ocidente é legal, e toma logo
uma rasteira do "New York Times"? É
como se o jornalão quisesse dizer: "Não
é nada disso." Masoquismo elegante,
uma incapacidade crescente de olhar
para dentro de si e dizer: nós prezamos
os valores certos, universais, aqueles
que dão ao homem a possibilidade de
viver livremente e de ser respeitado.
Em resumo, com conclusões totalmente diferentes, os dois livros acabam
ensejando o mesmo tipo de análise: como o Ocidente é culpado, é natural a
transformação de um aculturado paquistanês num fundamentalista e é absurdo que uma somali abandone a sua fé e se
encante com um Ocidente que, ela não
vê, é tão imperfeito.
Aqui mesmo, o ex-presidente Fernando Henrique, em artigo no GLOBO e
no "Estadão", caiu no relativismo que
parece nos impregnar. Depois de corretamente sublinhar que valores não podem ser impostos pela força, FH escreveu: "Isso não quer dizer que devamos
renunciar ao núcleo central da visão
ocidental do mundo. Mas nós ocidentais teremos de aprender a conviver
com as demais formas de civilização e
cultura. Se os valores ocidentais vierem a prevalecer, será progressivamente e antes pela aceitação espontânea
do que pela força e pela imposição."
O que o presidente parece não perceber, primeiro, é que não é o Ocidente
que quer impor os seus valores a outras civilizações, mas, no momento histórico em que vivemos, é justamente o
contrário. Somos nós que estamos sob
ameaça. É o totalitarismo islâmico que
nos quer impor, pela força, sua visão
de mundo. E, em segundo lugar, nem
tudo o que é diferente é aceitável e deve ser respeitado. Eu vou deplorar
sempre qualquer sociedade que fira as
liberdades fundamentais do homem. E
vou sempre achar necessário que estejamos prontos para repelir aquelas que
queiram nos impor, pela força, uma visão de mundo que nos escravize.
Enquanto o Ocidente vacila, os inimigos se fortalecem.