Najaf, Kufa, Basra e Karbala. O
mundo inteiro passou a conhecer o
nome dessas cidades, mais antigas
do que Bagdá. Hoje cenário onde se
desenrola a guerra de americanos e
ingleses contra o Iraque de Saddam
Hussein, elas também foram o palco de guerras que estabeleceram já
nos primeiros anos do islamismo a
separação entre sunitas e xiitas.
Maomé recebeu a primeira revelação aos 40 anos. Nos três primeiros anos, o Profeta contou sobre as
mensagens que recebia do Arcanjo
Gabriel apenas à sua família: a mulher Khadija e o primo Ali. Depois
desse curto período, Maomé come-
çou a sua pregação pública, que
durou até o momento em que a revelação se encerrou, 23 anos depois, com a sua morte. O conjunto
das revelações forma o Alcorão
que, como muitos já sabem, respeita os livros sagrados anteriormente revelados (Torá e Evangelhos),
mas faz deles uma releitura. Nele
está toda a linhagem de profetas e
personagens bíblicos, como Adão
e Eva, Noé, Abraão, Moisés, Jesus.
Quando Maomé morreu, teve iní-
cio um período de 28 anos durante
o qual, pouco a pouco, foi se formando uma profunda divisão no
seio do islamismo. Segundo os sunitas, o Profeta jamais indicou
quem seria o seu sucessor ("califa",
em árabe); segundo os xiitas, Maomé teria deixado claro que o sucessor seria seu primo Ali, a quem tinha dado sua filha Fátima como esposa. Tradições aceitas pelos dois
lados dão conta de que Maomé, por
diversas vezes, demonstrou seu
imenso amor e admiração por Ali, a
quem considerava um bravo guerreiro, um juiz justo, o mais caridoso
dos homens, o mais generoso, o
mais sábio. "Eu sou a cidade do conhecimento e Ali é o portão dessa
cidade", disse Maomé.
Para os xiitas, isso era a prova de
que o profeta indicara Ali para sucedê-lo; para os sunitas, os ditos do
Profeta expressavam tão somente a
admiração pelo homem Ali. Morto o
Profeta, enquanto Ali estava preparando o corpo para o sepultamento,
a comunidade se reuniu e escolheu
para califa Abu Bakr, o primeiro homem, fora da família de Maomé, a
tornar-se muçulmano. Os partidá-
rios de Ali levaram um choque, mas
ele, primo e genro do Profeta, não
fez qualquer reivindicação (a palavra xiita vem exatamente de "shiit al
Ali", que quer dizer "os partidários
de Ali"). A Abu Bakr, sucederam
Omar e, depois, Osman, ambos assassinados. Ali, então, foi aclamado
por todos como o quarto califa. A
exceção foi o governador da Síria,
Muawiya, sobrinho de Osman, que
não aceitou Ali, acusando-o de não
ter se esforçado para punir os assassinos do tio.
A habilidade política não era o
forte de Ali, mais atento às questões da religião, o que, pouco a
pouco, criou contra ele um ambiente hostil. Tão logo assumiu,
ele se pôs a endireitar tudo o que
considerava que os seus predecessores tinham feito de errado,
condenando, em governadores indicados por Osman, os excessos
de luxo, o uso do álcool, a desaten-
ção pelo povo.
Trocou a sede do governo de Medina, na Arábia, para Kufa, no atual
Iraque. Logo no início de seu califado, Ali teve de enfrentar, em Basra, uma campanha contra ele, dirigida por Aishia, uma das viúvas de
Maomé, e por três antigos companheiros do Profeta, que se sentiram preteridos na sua eleição. O
exército de Ali se saiu vitorioso, e
os três foram mortos; Aishia foi
poupada por seus laços com Maomé. O governador da Síria, contudo, reuniu aliados e travou uma batalha contra Ali, mais dura do que a
liderada por Aishia. A batalha foi
inconclusiva e, naqueles momentos de incerteza, Ali sofreu um
atentado praticado por aliados de
Muawiya, tendo morrido dois dias
depois. Segundo a tradição, foi enterrado em Najaf, onde se construiu uma mesquita, que leva o seu
nome, no interior da qual está o
seu túmulo.
Com a morte de Ali, a divisão entre sunitas e xiitas consolidou-se.
Os sunitas, maioria, acreditam que
a revelação acabou com a morte de
Maomé. O que resta a fazer é viver
como o Alcorão manda, seguir a
Suna (tudo o que o Profeta fez e
disse, origem do termo sunita), e
esperar o final dos tempos. Mesmo
entre eles, há matizes e sub-grupos: são quatro as escolas teológicas sunitas, sem falar na "reforma"
ultra-radical wahhabista do século
XVIII, seita hoje majoritária na Ará-
bia Saudita (são de matiz wahhabista os grupos de Bin Laden, Hamas, Jihad Islâmica).
Para os xiitas, a revelação de fato acabou com a morte de Maomé,
mas há nela significados ocultos a
que só têm acesso o Imã ("aquele
que vai à frente", guia espiritual, representante de Deus). Para eles, é
impossível que a Terra fique sem
um Imã (hoje, essa designação é
usada também, apenas honorificamente, por alguns líderes religiosos). O primeiro Imã foi Adão, numa seqüência até Jesus e Maomé,
depois do qual só poderiam ser
Imãs os da família do profeta, apenas na descendência de Ali e Fátima. Assim, Ali foi o primeiro Imã e
seu filho, Hasan, o segundo; ao abdicar, foi sucedido pelo seu irmão
Hussein, cujo martírio em Karbala
marcou profundamente a história
do xiismo.
Os Imãs foram se sucedendo,
num processo que deu origem a
muitas seitas, surgidas a cada vez
que um Imã morria: ora um sucessor não era aceito, ora alguém se
rebelava e se dizia ele próprio o
Imã. A mais poderosa corrente xiita
é maioria no Irã e no Iraque e são
conhecidos como os xiitas dos 12
Imãs, o último deles um Imã oculto,
vivo até hoje. Quando o décimo
primeiro morreu, no século XI, seu
único filho era um menino de 5
anos. Por medida de segurança, ele
só falava aos fiéis através de portavozes que, antes de morrer, nomeavam um sucessor: foram quatro,
até que o último anunciou que
morreria e que, depois dele, não
haveria mais porta-vozes e que o
Imã permaneceria vivo para sempre, embora oculto. No final dos
tempos, este Imã aparecerá e travará uma luta contra as forças do
mal, que serão derrotadas. Ele governará a Terra por alguns anos, e,
depois, retornarão Jesus, Maomé,
Ali, todos os Imãs e profetas e finalmente Deus, para o Dia do Juízo Final. Os sunitas não acreditam, claro, no Imã oculto, mas compartilham a crença na volta de Jesus e
no dia do Juízo Final.
Naturalmente, a fé dos xiitas
sempre despertou a ira dos sunitas, que os acusam de politeístas,
porque cultuam santos e mártires
(alguns sunitas chegam a dizer que
os xiitas divinizaram a figura de
Ali).
Sunitas ou xiitas, contudo, todos
são muçulmanos, acreditam no
Deus único e no Alcorão como tendo sido revelado a Maomé. Ambas
as correntes compartilham de uma
profunda religiosidade, e todos se
sentem parte do islamismo, que
quer dizer "submissão voluntária à
vontade de Deus". Islã é uma palavra que, em árabe, tem a mesma
raiz de "paz". É mesmo uma lástima que os grupos radicais de ambos os lados contribuam para que,
no mundo de hoje, o islamismo tenha, para muitos, uma imagem de
violência.