"Os dois Islãs", O Globo, 05/04/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Os dois Islãs", O Globo, 05/04/2003

Najaf, Kufa, Basra e Karbala. O mundo inteiro passou a conhecer o nome dessas cidades, mais antigas do que Bagdá. Hoje cenário onde se desenrola a guerra de americanos e ingleses contra o Iraque de Saddam Hussein, elas também foram o palco de guerras que estabeleceram já nos primeiros anos do islamismo a separação entre sunitas e xiitas.

Maomé recebeu a primeira revelação aos 40 anos. Nos três primeiros anos, o Profeta contou sobre as mensagens que recebia do Arcanjo Gabriel apenas à sua família: a mulher Khadija e o primo Ali. Depois desse curto período, Maomé come- çou a sua pregação pública, que durou até o momento em que a revelação se encerrou, 23 anos depois, com a sua morte. O conjunto das revelações forma o Alcorão que, como muitos já sabem, respeita os livros sagrados anteriormente revelados (Torá e Evangelhos), mas faz deles uma releitura. Nele está toda a linhagem de profetas e personagens bíblicos, como Adão e Eva, Noé, Abraão, Moisés, Jesus.

Quando Maomé morreu, teve iní- cio um período de 28 anos durante o qual, pouco a pouco, foi se formando uma profunda divisão no seio do islamismo. Segundo os sunitas, o Profeta jamais indicou quem seria o seu sucessor ("califa", em árabe); segundo os xiitas, Maomé teria deixado claro que o sucessor seria seu primo Ali, a quem tinha dado sua filha Fátima como esposa. Tradições aceitas pelos dois lados dão conta de que Maomé, por diversas vezes, demonstrou seu imenso amor e admiração por Ali, a quem considerava um bravo guerreiro, um juiz justo, o mais caridoso dos homens, o mais generoso, o mais sábio. "Eu sou a cidade do conhecimento e Ali é o portão dessa cidade", disse Maomé.

Para os xiitas, isso era a prova de que o profeta indicara Ali para sucedê-lo; para os sunitas, os ditos do Profeta expressavam tão somente a admiração pelo homem Ali. Morto o Profeta, enquanto Ali estava preparando o corpo para o sepultamento, a comunidade se reuniu e escolheu para califa Abu Bakr, o primeiro homem, fora da família de Maomé, a tornar-se muçulmano. Os partidá- rios de Ali levaram um choque, mas ele, primo e genro do Profeta, não fez qualquer reivindicação (a palavra xiita vem exatamente de "shiit al Ali", que quer dizer "os partidários de Ali"). A Abu Bakr, sucederam Omar e, depois, Osman, ambos assassinados. Ali, então, foi aclamado por todos como o quarto califa. A exceção foi o governador da Síria, Muawiya, sobrinho de Osman, que não aceitou Ali, acusando-o de não ter se esforçado para punir os assassinos do tio.

A habilidade política não era o forte de Ali, mais atento às questões da religião, o que, pouco a pouco, criou contra ele um ambiente hostil. Tão logo assumiu, ele se pôs a endireitar tudo o que considerava que os seus predecessores tinham feito de errado, condenando, em governadores indicados por Osman, os excessos de luxo, o uso do álcool, a desaten- ção pelo povo.

Trocou a sede do governo de Medina, na Arábia, para Kufa, no atual Iraque. Logo no início de seu califado, Ali teve de enfrentar, em Basra, uma campanha contra ele, dirigida por Aishia, uma das viúvas de Maomé, e por três antigos companheiros do Profeta, que se sentiram preteridos na sua eleição. O exército de Ali se saiu vitorioso, e os três foram mortos; Aishia foi poupada por seus laços com Maomé. O governador da Síria, contudo, reuniu aliados e travou uma batalha contra Ali, mais dura do que a liderada por Aishia. A batalha foi inconclusiva e, naqueles momentos de incerteza, Ali sofreu um atentado praticado por aliados de Muawiya, tendo morrido dois dias depois. Segundo a tradição, foi enterrado em Najaf, onde se construiu uma mesquita, que leva o seu nome, no interior da qual está o seu túmulo.

Com a morte de Ali, a divisão entre sunitas e xiitas consolidou-se. Os sunitas, maioria, acreditam que a revelação acabou com a morte de Maomé. O que resta a fazer é viver como o Alcorão manda, seguir a Suna (tudo o que o Profeta fez e disse, origem do termo sunita), e esperar o final dos tempos. Mesmo entre eles, há matizes e sub-grupos: são quatro as escolas teológicas sunitas, sem falar na "reforma" ultra-radical wahhabista do século XVIII, seita hoje majoritária na Ará- bia Saudita (são de matiz wahhabista os grupos de Bin Laden, Hamas, Jihad Islâmica).

Para os xiitas, a revelação de fato acabou com a morte de Maomé, mas há nela significados ocultos a que só têm acesso o Imã ("aquele que vai à frente", guia espiritual, representante de Deus). Para eles, é impossível que a Terra fique sem um Imã (hoje, essa designação é usada também, apenas honorificamente, por alguns líderes religiosos). O primeiro Imã foi Adão, numa seqüência até Jesus e Maomé, depois do qual só poderiam ser Imãs os da família do profeta, apenas na descendência de Ali e Fátima. Assim, Ali foi o primeiro Imã e seu filho, Hasan, o segundo; ao abdicar, foi sucedido pelo seu irmão Hussein, cujo martírio em Karbala marcou profundamente a história do xiismo.

Os Imãs foram se sucedendo, num processo que deu origem a muitas seitas, surgidas a cada vez que um Imã morria: ora um sucessor não era aceito, ora alguém se rebelava e se dizia ele próprio o Imã. A mais poderosa corrente xiita é maioria no Irã e no Iraque e são conhecidos como os xiitas dos 12 Imãs, o último deles um Imã oculto, vivo até hoje. Quando o décimo primeiro morreu, no século XI, seu único filho era um menino de 5 anos. Por medida de segurança, ele só falava aos fiéis através de portavozes que, antes de morrer, nomeavam um sucessor: foram quatro, até que o último anunciou que morreria e que, depois dele, não haveria mais porta-vozes e que o Imã permaneceria vivo para sempre, embora oculto. No final dos tempos, este Imã aparecerá e travará uma luta contra as forças do mal, que serão derrotadas. Ele governará a Terra por alguns anos, e, depois, retornarão Jesus, Maomé, Ali, todos os Imãs e profetas e finalmente Deus, para o Dia do Juízo Final. Os sunitas não acreditam, claro, no Imã oculto, mas compartilham a crença na volta de Jesus e no dia do Juízo Final.

Naturalmente, a fé dos xiitas sempre despertou a ira dos sunitas, que os acusam de politeístas, porque cultuam santos e mártires (alguns sunitas chegam a dizer que os xiitas divinizaram a figura de Ali).

Sunitas ou xiitas, contudo, todos são muçulmanos, acreditam no Deus único e no Alcorão como tendo sido revelado a Maomé. Ambas as correntes compartilham de uma profunda religiosidade, e todos se sentem parte do islamismo, que quer dizer "submissão voluntária à vontade de Deus". Islã é uma palavra que, em árabe, tem a mesma raiz de "paz". É mesmo uma lástima que os grupos radicais de ambos os lados contribuam para que, no mundo de hoje, o islamismo tenha, para muitos, uma imagem de violência.