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e tudo o que já se falou sobre "A Paixão de Cristo", de
Mel Gibson, o que mais me
surpreendeu foi a pergunta
que o filme andou suscitando: "Quem
matou Jesus?" Os judeus, sentindose justificadamente ultrajados, escreveram artigos para mostrar que foram os romanos, claro, porque dominavam então a província da Judéia. E
acusaram o filme de anti-semitismo.
Alguns cristãos disseram que foram
romanos e judeus, mas, mesmo assim, acentuaram que foram "aqueles" judeus, e não todo o povo judeu.
Outros cristãos preferiram passar
pela pergunta, reiterando apenas que
nada há de anti-semita no filme: se todos ali são judeus, de Jesus a Judas,
como, então, o filme pode ser anti-semita? Na verdade, o anti-semitismo
do filme reside exatamente em propiciar o ressurgimento de um debate
como esse. Porque a pergunta é absolutamente absurda.
Para os cristãos, a morte de Jesus
era um plano de Deus, o mais generoso plano de Deus, nada poderia impedi-la. Jesus sempre soube que seria morto e fez questão de anunciar
isso a seus discípulos, muito antes da
Paixão. Mateus conta: "Desde esse
tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos
principais sacerdotes e dos escribas,
ser morto e ressuscitado no terceiro
dia. E Pedro, chamando-o à parte, começou a reprová-lo, dizendo: 'Tende
compaixão de ti, Senhor, isso de modo algum te acontecerá.' Mas Jesus,
voltando-se, disse a Pedro: 'Arreda,
Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas
de Deus, e sim dos homens.'"
Marcos e Lucas narram os mesmos
fatos. Em outro momento, quando Jesus vai à casa de Tiago e João, a mãe
dos dois pede que seus filhos sejam
aceitos no novo reino e que se assentem "um ao teu lado direito e outro
ao teu lado esquerdo". Jesus esclarece que isso não compete a Ele, mas
ao Pai, e o incidente provoca a fúria
dos outros dez discípulos. Mateus
narra: "Então Jesus, chamando-os,
disse: 'Sabeis que os governadores
dos povos os dominam e que os
maiorais exercem autoridade sobre
eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande
entre vós, será o que vos sirva; e
quem quiser ser o primeiro entre
vós, será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua
vida em resgate por muitos'" (Mateus, 20: 22-28).
A morte de Jesus era, portanto, ao
mesmo tempo, inevitável e necessá-
ria. Porque, segundo os cristãos,
Deus se fez carne para livrar os pecados do mundo. Ao pecar, Adão legou a toda a sua descendência o mesmo pecado, e ela, pecadora, teve como punição a morte eterna. Com o
sacrifício de Jesus, os pecados do
mundo foram redimidos e todo aquele que Nele crer será salvo.
A morte sacrifical é um tema antigo na Bíblia. Deus, para comprovar a
lealdade de Abraão, pediu-lhe em sacrifício seu filho Isaac. Mas, no exato
instante, a mão do anjo impediu que
ele cometesse o filicídio e recomendou que, em lugar de Isaac, fosse
morto um cordeiro. Na lei mosaica, o
sangue era purificador, mas deveria
vir de um animal sem defeitos.
"Quando alguém oferecer sacrifício
pacífico ao Senhor, quer em cumprimento de voto ou em oferta voluntá-
ria, do gado ou do rebanho, o animal
deve ser sem defeito para ser aceitá-
vel; nele, não haverá defeito algum"
(Levítico, 22: 21).
Paulo, em sua carta aos Hebreus,
diz: "Pelo que nem a Primeira Aliança
foi sancionada sem sangue, porque
Moisés, proclamado todos os mandamentos segundo a lei a todo o povo,
tomou o sangue de bezerros e dos bodes, com água e lã tinta de escarlate, e
hissopo, e aspergiu não só o próprio
Livro, como também sobre todo o povo, dizendo: 'Este é o sangue da Alian-
ça, a qual Deus prescreveu para vós
outros'" (Hebreus, 9: 19-21).
Mas, para redimir o pecado herdado de Adão, que pecou em estado de
perfeição, somente a morte sacrifical de um ser também puro e perfeito. E Deus, mostrando todo o amor à
Humanidade, faz-se homem e derrama o próprio sangue para salvar
suas criaturas. É também Paulo
quem explica aos romanos: "Mas
Deus prova o seu próprio amor para
conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira" (Romanos 5: 8-11). E, mais adiante: "Como
pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão
justos" (Romanos, 5: 19).
Numa visão menos literal, discutese até quem foi realmente Adão. Porque os primeiros capítulos do Gênesis são escritos no tom e na clave do
mito — não é um texto "realista".
Uma teologia moderna diria que
Adão significa a Humanidade inteira,
o ser humano, feito de barro, e capaz
de afastar-se de Deus. Mas, mesmo
nesse caso, a morte de Jesus tem relação com o rito de purificação: uma
espécie de Nova Aliança, de reforço
da Aliança antiga, trazendo ao ser humano melhores condições de acesso
à vida divina.
Se Jesus não tivesse morrido, não
haveria cristianismo e a vida Dele talvez se resumisse ao que descreve Nikos Kazantzakis, no seu romance "A
última tentação de Cristo" (na cruz,
Jesus tem sua última fraqueza e imagina como teria sido a sua vida se o
Pai tivesse mesmo dele afastado
aquele cálice: a velhice, ao lado de
uma mulher bondosa e filhos, mas
com a Humanidade eternamente pecadora).
Por que, diante de uma história tão
sublime, Mel Gibson escolheu fazer
um filme com um enfoque capaz de
suscitar uma pergunta como aquela,
só ele pode responder.