"A paixão de Cristo e a pergunta absurda", O Globo, 30/03/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"A paixão de Cristo e a pergunta absurda", O Globo, 30/03/2004

D e tudo o que já se falou sobre "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, o que mais me surpreendeu foi a pergunta que o filme andou suscitando: "Quem matou Jesus?" Os judeus, sentindose justificadamente ultrajados, escreveram artigos para mostrar que foram os romanos, claro, porque dominavam então a província da Judéia. E acusaram o filme de anti-semitismo. Alguns cristãos disseram que foram romanos e judeus, mas, mesmo assim, acentuaram que foram "aqueles" judeus, e não todo o povo judeu. Outros cristãos preferiram passar pela pergunta, reiterando apenas que nada há de anti-semita no filme: se todos ali são judeus, de Jesus a Judas, como, então, o filme pode ser anti-semita? Na verdade, o anti-semitismo do filme reside exatamente em propiciar o ressurgimento de um debate como esse. Porque a pergunta é absolutamente absurda.

Para os cristãos, a morte de Jesus era um plano de Deus, o mais generoso plano de Deus, nada poderia impedi-la. Jesus sempre soube que seria morto e fez questão de anunciar isso a seus discípulos, muito antes da Paixão. Mateus conta: "Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia. E Pedro, chamando-o à parte, começou a reprová-lo, dizendo: 'Tende compaixão de ti, Senhor, isso de modo algum te acontecerá.' Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: 'Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim dos homens.'"

Marcos e Lucas narram os mesmos fatos. Em outro momento, quando Jesus vai à casa de Tiago e João, a mãe dos dois pede que seus filhos sejam aceitos no novo reino e que se assentem "um ao teu lado direito e outro ao teu lado esquerdo". Jesus esclarece que isso não compete a Ele, mas ao Pai, e o incidente provoca a fúria dos outros dez discípulos. Mateus narra: "Então Jesus, chamando-os, disse: 'Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos'" (Mateus, 20: 22-28).

A morte de Jesus era, portanto, ao mesmo tempo, inevitável e necessá- ria. Porque, segundo os cristãos, Deus se fez carne para livrar os pecados do mundo. Ao pecar, Adão legou a toda a sua descendência o mesmo pecado, e ela, pecadora, teve como punição a morte eterna. Com o sacrifício de Jesus, os pecados do mundo foram redimidos e todo aquele que Nele crer será salvo.

A morte sacrifical é um tema antigo na Bíblia. Deus, para comprovar a lealdade de Abraão, pediu-lhe em sacrifício seu filho Isaac. Mas, no exato instante, a mão do anjo impediu que ele cometesse o filicídio e recomendou que, em lugar de Isaac, fosse morto um cordeiro. Na lei mosaica, o sangue era purificador, mas deveria vir de um animal sem defeitos. "Quando alguém oferecer sacrifício pacífico ao Senhor, quer em cumprimento de voto ou em oferta voluntá- ria, do gado ou do rebanho, o animal deve ser sem defeito para ser aceitá- vel; nele, não haverá defeito algum" (Levítico, 22: 21).

Paulo, em sua carta aos Hebreus, diz: "Pelo que nem a Primeira Aliança foi sancionada sem sangue, porque Moisés, proclamado todos os mandamentos segundo a lei a todo o povo, tomou o sangue de bezerros e dos bodes, com água e lã tinta de escarlate, e hissopo, e aspergiu não só o próprio Livro, como também sobre todo o povo, dizendo: 'Este é o sangue da Alian- ça, a qual Deus prescreveu para vós outros'" (Hebreus, 9: 19-21).

Mas, para redimir o pecado herdado de Adão, que pecou em estado de perfeição, somente a morte sacrifical de um ser também puro e perfeito. E Deus, mostrando todo o amor à Humanidade, faz-se homem e derrama o próprio sangue para salvar suas criaturas. É também Paulo quem explica aos romanos: "Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira" (Romanos 5: 8-11). E, mais adiante: "Como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos" (Romanos, 5: 19).

Numa visão menos literal, discutese até quem foi realmente Adão. Porque os primeiros capítulos do Gênesis são escritos no tom e na clave do mito — não é um texto "realista". Uma teologia moderna diria que Adão significa a Humanidade inteira, o ser humano, feito de barro, e capaz de afastar-se de Deus. Mas, mesmo nesse caso, a morte de Jesus tem relação com o rito de purificação: uma espécie de Nova Aliança, de reforço da Aliança antiga, trazendo ao ser humano melhores condições de acesso à vida divina.

Se Jesus não tivesse morrido, não haveria cristianismo e a vida Dele talvez se resumisse ao que descreve Nikos Kazantzakis, no seu romance "A última tentação de Cristo" (na cruz, Jesus tem sua última fraqueza e imagina como teria sido a sua vida se o Pai tivesse mesmo dele afastado aquele cálice: a velhice, ao lado de uma mulher bondosa e filhos, mas com a Humanidade eternamente pecadora).

Por que, diante de uma história tão sublime, Mel Gibson escolheu fazer um filme com um enfoque capaz de suscitar uma pergunta como aquela, só ele pode responder.