Muito corajoso esse Papa.
Não me refiro aqui à coragem de reafirmar posi-
ções da Igreja que encontram pouca ressonância nas multidões de hoje em dia, como a questão
da defesa da virgindade, do matrimônio, a repulsa ao divórcio. Como disse
um entrevistado numa das centenas
de reportagens publicadas nos últimos dias, notícia seria ele afirmar o
contrário. Todas essas questões podem ser reguladas pela Igreja, mas,
nos dias de hoje, para uma vasta
maioria, continuarão a ser uma questão de foro íntimo. A Igreja, do alto de
seus 2.000 anos, diz a seus fiéis o que
é ou não pecado, e os fiéis, diante de
algumas questões, parecem querer
apostar que Deus é capaz de compreender o dissenso. A Igreja os considera, nas palavras do Papa, "cristãos batizados mas não suficientemente
evangelizados". A frase pode ser vista
como um insulto a quem se quer profundamente católico, porém disposto
a discordar, por dentro, da hierarquia
eclesiástica. Analisando de perto, no
entanto, a frase soa mais como uma
resignada autocrítica. Esse "dissenso"
vai dar em algum lugar. Sempre deu.
Onde, ninguém sabe. Mas a julgar pelo fato de que a Igreja é a instituição
mais longeva do Ocidente, melhor
não duvidar de sua capacidade de se
mover. Melhor assim.
O que me impressionou no Papa em
São Paulo foi a sua coragem ao discursar na Fazenda Esperança. Depois de
constatar que as drogas são um problema gravíssimo no Brasil e na Amé-
rica Latina, o Papa declarou: "Digo aos
que comercializam a droga que pensem no mal que estão provocando a
uma multidão de jovens e de adultos
de todos os segmentos da sociedade:
Deus vai-lhes exigir satisfações." A
muitos pareceu apenas que o Papa estava dizendo o óbvio (para quem crê):
que os traficantes são pecadores que
terão de se entender com Deus depois. Mas foi muito mais do que isso.
Na seqüência da frase, Bento XVI disse: "A dignidade humana não pode ser
espezinhada dessa maneira. O mal
provocado recebe a mesma reprovação dada por Jesus aos
que escandalizavam os
'pequeninos', os preferidos de Deus."
Era uma referência a
Mateus, capítulo 18. Os
discípulos perguntam
quem é o maior no Reino de Deus. Jesus chama ao centro uma criança e diz que quem não
se fizer uma criança,
quem não for humilde
como ela, não entrará
no Reino dos Céus. Em
seguida, Jesus lança uma maldição a
quem cause "escândalo": "Caso alguém escandalize um destes pequeninos, melhor será que lhe pendurem ao
pescoço uma pesada mó [a grande pedra de um moinho] e seja precipitado
nas profundezas do mar." (Mt 18, 6).
Ou seja, o Papa quis dizer que o crime
que os traficantes cometem é merecedor das palavras mais duras proferidas por Cristo. Um choque para os
que tendem a ver o tráfico como uma
atividade dos que não tiveram opção,
dos marginalizados, daqueles que são
"empurrados" para o crime. Nada disso. O Papa diz alto e bom som o que,
na linguagem de advogados, seria
classificado de "crime hediondo".
Chamei de maldição a frase de Jesus porque é assim que a trata o Catecismo da Igreja Católica, que também define "escândalo" como "a atitude ou o comportamento que leva
outrem a praticar o mal". "O escândalo se reveste de uma gravidade
particular em virtude da autoridade
dos que o causam ou da fraqueza dos
que o sofrem. Foi o que inspirou a
Nosso Senhor a maldição: 'Caso alguém escandalize um
destes pequeninos,
melhor será que lhe
pendurem ao pescoço
uma pesada mó e seja
precipitado nas profundezas do mar'," diz o
Catecismo. É uma passagem forte. Se a Igreja
sofresse do mal do literalismo ou de interpretações radicais, logo
surgiria alguém para dizer que ali Jesus admitiu a pena de morte.
Não se trata disso, evidentemente.
Jesus usa de uma metáfora para afirmar, da maneira mais categórica possível, que há homens que se comportam de tal modo que não são dignos
do dom da vida. Os traficantes são
gente assim.
Isso também não quer dizer que a
Igreja condene a pena de morte, em
toda e qualquer circunstância, tal como muitos imaginam. No mesmo Catecismo está dito: "O ensino da Igreja
não exclui, depois de comprovadas
cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à
pena de morte, se esta for a única via
praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor
injusto. Se os meios incruentos bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança
das pessoas, a autoridade se limitará
a esses meios, porque correspondem
melhor às condições concretas do
bem comum e estão mais conformes
à dignidade da pessoa humana." Ou
seja, se o agressor puder ser contido
e preso, em nenhuma hipótese ele
deve ser condenado à morte, mas,
num caso em que nada seja suficiente para contê-lo, a morte deve ser a
pena prescrita. Um exemplo poderia
ser a de um criminoso que mantém
reféns, mata alguns e dá todas as
mostras de que matará os demais.
Esgotados todos os recursos para
neutralizá-lo, todos mesmos, matá-lo
é um imperativo. O curioso é que ao
contar isso a muitas pessoas, católicas, a surpresa foi grande. Elas pareciam acreditar que o "não matarás" e
o mandamento de Cristo de oferecer
a outra face e amar o seu inimigo devessem ser seguidos ao pé da letra.
O problema é que o pé da letra
não existe. Na visita do Papa, de tudo o que ele nos disse, acho que o
que mais nos deveria tocar foi a condenação sem meios tons daquela
que é hoje uma de nossas maiores
aflições: o tráfico de drogas que move o crime. Nosso olhar para os traficantes não deve ser nunca condescendente. Eles não merecem piedade. Eles são um escândalo.