O
capítulo sobre programas
de transferência de renda
da PNAD 2004 tem muitas
limitações, pois nada foi dito sobre qualquer programa isoladamente nem tampouco sobre quanto
da renda de cada domicílio vem de
programas governamentais. O IBGE
alega, com razão, que quis apenas fazer um panorama geral, traçando o
perfil daqueles que recebem algum tipo de transferência e daqueles que nada recebem. Alega também que é apenas um coletor de informações e que
não pode se transformar num fiscal
do governo, sob pena de perder a confiança dos entrevistados e, com isso, a
qualidade da informação: se o entrevistado antevir que o que disser sobre
os bens que possui e sobre a composição de sua renda pode se voltar contra ele na forma de suspensão de benefícios, sua tendência será sonegar
informações ou até mesmo mentir. A
tarefa de fiscalizar caberia mesmo ao
governo, que deveria sair a campo verificando se os beneficiários fazem
mesmo parte ou não do público-alvo.
Infelizmente, o governo não faz isso.
De qualquer modo, como não poderia deixar de ser, a pesquisa trouxe alguma luz ao debate sobre focalização.
Só com o Bolsa Família e com a aposentadoria especial a idosos e deficientes pobres o governo planeja gastar esse ano R$ 19 bi, mas, apesar desse caminhão de dinheiro, apenas
50,3% dos domicílios com renda per capita de até um quarto de salário mínimo, os mais miseráveis do país portanto, beneficiam-se de algum tipo de
programa de transferência de renda.
Todo o resto está a ver navios. Podese fazer também outro corte: a porcentagem dos domicílios com renda
per capita de até R$ 100, público-alvo
do Bolsa Família, que recebem algum
tipo de transferência de renda, qualquer um, é de 45,7%. Pelos cálculos do
governo, o Bolsa Família estaria atendendo em 2004 a 59% daquela população. A diferença entre os dois números é resultante da falta de foco.
A boa notícia é que 91% dos beneficiários moram em domicílios
com renda per capita de até um salário mínimo, o que faz deles certamente pobres. Mas a pergunta que
cabe é esta: é eficaz um programa
que, antes de atender a todos os miseráveis, beneficie famílias pobres,
mas não as mais pobres? Isso denota falta de foco e de controle.
O IBGE não analisou um programa
específico, mas tornou públicos os
dados sobre eles. Para a maioria dos
programas, os dados podem levar a
erros, pois os entrevistados podem
ter se confundido, tantos são os nomes, tantas são as regras. Creio, porém, que um deles se presta a uma
análise em separado: as tais aposentadorias especiais para idosos e deficientes físicos pobres. O programa
está implantado desde 1996, tem como público-alvo aqueles com renda
per capita de até um quarto de salário
mínimo e o benefício é sempre de um
salário mínimo (em todos os outros
programas, o valor depende de muitas variáveis). Para se verificar se os
beneficiários estão dentro do público-alvo, há, porém, um problema sé-
rio: a renda do domicílio é calculada
incluindo-se o dinheiro proveniente
do programa. Mas, como o benefício
é sempre de um salário mínimo, basta
subtrair essa quantia da renda total
do domicílio para que a renda real seja conhecida. Foi o exercício que fiz, e
o resultado que mostrarei abaixo não
é nada animador.
A primeira coisa que se nota é uma
grande subnotificação. Enquanto nos
registros do governo cerca de 2 milhões de brasileiros recebiam o benefício em 2004, o IBGE revelou 858.508
beneficiários em 726.333 domicílios
(ou seja, em alguns casos, há mais de
um beneficiário por domicílio, o que a
lei permite). Há duas hipóteses: muitos podem ter omitido o benefício por
saberem que o recebem irregularmente e muitos podem apenas tê-lo confundido com uma aposentadoria comum do INSS. De qualquer forma, o
volume dos que declaram o benefício
já permite uma boa análise. Destes,
apenas 42% moram em domicílios
que, sem o benefício, teriam uma renda per capita de até um quarto de salário mínimo, 27% teriam renda per capita entre um quarto de salário mínimo e meio salário mínimo, 20,3% estariam na faixa entre meio e um salário mínimo, 7,3%, entre um e dois salários mínimos e 2,9% teriam renda
per capita superior a dois mínimos.
Considerando-se que o governo prevê
gastar em 2006 R$ 11 bi com esse programa, trata-se de um desvio e tanto.
Isso pode ser confirmado pela análise do perfil socioeconômico dos beneficiários e dos que nada recebem
mesmo estando na faixa de renda prevista. As discrepâncias são enormes.
O perfil dos que têm renda domiciliar
per capita de até um quarto de salário
mínimo e não recebem nenhum benefício é a seguinte: 58,6% têm geladeira;
5%, freezer; 5,9%, máquina de lavar;
70,9%, rádio; 70,6%, TV; 0,9%, microcomputador; 62,7% têm acesso a água
tratada; 37,2% têm esgoto sanitário;
62,3% dispõem de coleta de lixo;
87,1% têm luz elétrica e 25,1% têm telefone. Já o perfil dos que recebem o
LOAS é melhor em todos os itens: 78%
têm geladeira; 8%, freezer; 11%, máquina de lavar; 81%, rádio, 83%, TV;
3%, microcomputador; 76% têm acesso a água tratada; 51% têm esgoto sanitário; 76% dispõem de coleta de lixo;
95% têm luz elétrica; e 43%, telefone.
Se, de fato, apenas domicílios com
renda per capita de até um quarto de
salário mínimo recebessem o benefício, esses resultados poderiam indicar apenas que o impacto do programa é grande na melhoria da vida das
pessoas: um salário mínimo a mais
ajudaria o grupo que recebe a ter mais
bens e serviços do que o grupo que
não recebe. Mas, como mostrei acima,
não é isso o que acontece, já que 58%
dos beneficiários têm renda superior
à exigida. A maior parte dos que recebe tem um perfil melhor porque já
tinha renda maior, mesmo antes de receber o benefício do governo.
Num país em que falta dinheiro para a educação, o governo precisa corrigir o rumo urgentemente.