Se alguém rompe a linha da
pobreza porque recebe uma
ajuda em dinheiro do governo, é correto que as estatísticas deixem de considerar essa
pessoa como sendo pobre?
O bom senso diz que não: tire a ajuda
e o pobre voltará a ser pobre.
Em todas as linhas da pobreza divulgadas, houve queda acentuada no nú-
mero de pobres. Entre as explicações
mais convincentes, o crescimento econômico, a baixa inflação e o aumento do
salário-mínimo, com grande impacto
nas aposentadorias e pensões de todo
tipo. Para o governo e alguns pesquisadores, no entanto, o Bolsa-Família teria
tido um impacto decisivo. Com as estatísticas disponíveis, porém, isso é impossível de ser comprovado.
O IBGE é um centro de excelência
e a PNAD é um dos mais importantes
instrumentos para se conhecer a
realidade brasileira. A metodologia
da pesquisa, porém, ainda não permite subtrair da renda das famílias
os recursos provenientes de programas sociais. Assim, os pesquisadores que elaboraram linhas de pobreza não tiveram outra opção senão
considerar toda a renda das famí-
lias, quando o ideal teria sido registrar a renda antes e depois da ajuda
do governo, até mesmo para que o
retrato obtido mostrasse a eficácia
dos programas: desse modo, teria sido possível identificar qual a contribuição específica do Bolsa-Família
na variação para mais na renda das
famílias. É dessa maneira que agemos países da União Européia, por
exemplo. Apenas com a PNAD, é impossível medir o impacto direto e
inequívoco do Bolsa-Família na redução do número de pobres.
Diante desse quadro, temos mais
uma confirmação de que o Bolsa-Família é um programa caríssimo e com um
controle frágil. O tal cartão magnético,
que registraria automaticamente a freqüência dos alunos, ficou, mais uma
vez, para o ano que vem. Até lá, o controle é feito à mão pelos professores e
depois posto na internet pelas secretarias, num processo ainda complicado.
O último relatório divulgado é de julho
e, apesar de já ter resposta de 80% das
escolas, as notícias não são boas: apenas 66% das crianças tiveram a freqüência escolar acompanhada. O controle das exigências no campo da saú-
de é ainda apenas projeto. E não podia
ser diferente. O pobre não deixa de cuidar da saúde porque quer, mas porque
não tem acesso aos serviços. Como o
governo não pode oferecê-lo à multidão que recebe o Bolsa-Família, ninguém se preocupa em cobrar nada. E,
agora, sabemos que as estatísticas disponíveis não dão ao governo sequer a
certeza do papel que o Bolsa-Família
tem nas famílias que romperam a linha
de pobreza. Um quadro desolador.
Pesquisadores sérios dizem que a
influência do Bolsa-Família na redução da pobreza foi pequena: afinal, se
a soma de todos os benefícios juntos
atinge alguns bilhões de reais, considerando o benefício médio mensal,
hoje da ordem de R$ 65, cada membro
de família beneficiada recebe apenas
cinqüenta centavos por dia.
Mas imaginemos que o governo está
certo e que o impacto do Bolsa-Família
na diminuição da pobreza tenha sido
de fato grande. Nessa hipótese, seríamos então obrigados a dizer que o retrato obtido nas linhas de pobreza não
teria sido o de uma pobreza menor,
mas de uma pobreza "maquiada". Os
índices estariam anabolizados. Se de
fato o pobre rompeu a linha da pobreza por causa do Bolsa-Família, como
apregoa o governo, quando essa ajuda
for tirada, o pobre voltará a ser pobre.
Porque o Bolsa-Família não acaba com
a pobreza, mas apenas atenua os seus
efeitos. O que tira um pobre da pobreza é o emprego. E só consegue emprego quando há um quadro de crescimento econômico. E só consegue bons
empregos aquele que tem qualificação. Crescimento econômico e educação de qualidade são a fórmula segura
para a um só tempo diminuir a pobreza e encurtar a desigualdade.
A pergunta que faço então é simples:
num país como o Brasil, em que ainda
não é universal o acesso a coisas básicas como educação de qualidade, é justo que o governo gaste um caminhão de
dinheiro em programas como o BolsaFamília? Como mostrou a Pesquisa de
Orçamento Familiar, a questão do Brasil
não é a fome: no Brasil o percentual de
pessoas emagrecidas, único indicador
que realmente mede a quantidade de famintos, é inferior ao limite máximo considerado normal. Se é assim, eu acredito que o Brasil tem necessidades mais
urgentes. Investir em educação é uma
delas, porque somente ela é capaz de
emancipar uma pessoa. A outra é investir na infra-estrutura do país de modo a superar os gargalos que impedem o
nosso desenvolvimento.
E, no entanto, o governo prefere gastar em 2006 R$ 8,3 bi no Bolsa-Família.
Em educação, investirá apenas R$ 8 bi,
enquanto impõe ao ministro da Fazenda
o papel de dizer não aos R$ 4,5 bi necessários à implantação do Fundeb, tido como essencial para melhorar a qualidade do ensino no Brasil. Para a rubrica investimentos, haverá apenas R$ 14
bi, o que obrigará o Brasil, por muitos
anos, a enfrentar portos deficientes, estradas caindo aos pedaços, falta de usinas hidrelétricas e escassez de recursos
para financiar o parque industrial.
Assim, mesmo se o Bolsa-Família fosse realmente eficaz no "combate à pobreza" (e não há agora como medir isso), o dinheiro gasto com ele até poderia ter um impacto imediato nos índices
de pobreza, mas este seria um impacto
virtual, artificial, aparente. Em qualquer
hipótese, no médio e no longo prazos, o
Bolsa-Família estará contribuindo, paradoxalmente, para a manutenção de milhões de brasileiros na pobreza, uma
vez que drenará os recursos que deveriam estar indo para educação e para a
infra-estrutura essencial ao crescimento. E sem educação e sem empregos,
ninguém sai, de fato, da pobreza. Terá
de viver, eternamente, de esmola.
É um tiro no pé. Mas que rende votos.
Eis, talvez, a origem da insensatez.
O governo Lula parece ter metido o
Brasil num nó sem saída: quem será o
político que terá coragem de explicar o
paradoxo e mexer num programa que
atinge uma multidão de eleitores?