Prometo que esta não será uma
espécie de redação, como aquelas que fazíamos na escola sobre
"nossas férias". Mas acho que esta última viagem tem algo a dizer sobre o
mundo em que vivemos.
Estive em Israel, país realmente maravilhoso, um tesouro arqueológico, que
deveria ser destino de todos aqueles interessados em conhecer de perto o lugar
de onde viemos. Ok, não sou um estúpido
e conheço bem o caldeirão de conflitos
que aquela parte do mundo representa, o
sofrimento do povo palestino, oprimido,
agora lutando entre si e se dividindo em
dois quinhões fratricidas. Mas vou passar
ao largo disso, porque não estive na Cisjordânia ou em Gaza, onde não há segurança para ninguém. Em Israel, o que vi
foi um país orgulhoso de si, em eterna
construção, com um povo nas ruas verdadeiramente desejando a paz. Vi arte,
cultura, diversão e segurança. Israel é
mais seguro e tranqüilo do que muitas de
nossas cidades. Recomendo.
Mas este artigo não é um guia turístico.
Quero dar o testemunho de como alguns
muçulmanos se tornam perigosamente
veículos do vírus da intolerância.
Impressionou-me o fato de que no
chamado Muro Ocidental — as ruínas
do que sobrou do II Templo — o acesso
seja livre a quem ali queira estar. Ninguém pergunta se você é ateu, espírita,
muçulmano, cristão ou seja lá o quê.
Entre os judeus, há a crença de que o
templo, tendo sido um dia a morada de
Deus, nunca deixará de ser: se ainda restam algumas pedras, ali Ele estará.
Um único pedido é feito aos visitantes:
que a cabeça dos homens seja coberta
em sinal de respeito. Pode ser por um
quipá (o solidéu que os judeus usam e
que ali estão disponíveis para os desavisados) ou um chapéu ou mesmo um
simples boné, não importa. É a única
exigência: o que você fará ali é problema seu. E, para os crentes, de Deus também. Uma coisa é certa: o lugar, ao qual
só se chega depois que atravessamos
ruelas que remontam a milhares de
anos, tem uma grande força mística.
O mesmo se pode dizer dos lugares
santos para cristãos. A liberdade é total em Nazaré, onde está a Igreja da
Anunciação, com a gruta em que o anjo
Gabriel disse à Maria que ela daria à luz
Jesus, filho de Deus, ou em Jerusalém,
onde estão Getsêmani, a gruta no Monte das Oliveiras em que Jesus foi capturado pelos romanos, ou o Santo Sepulcro, onde estão, lado a lado, o local
da crucificação de Cristo, a pedra onde
o seu corpo foi lavado e purificado e a
tumba onde foi sepultado até a ressurreição. Ali, entram o fiel em sua peregrinação mais sagrada e o turista disposto a ver com os próprios olhos um
lugar de importância incomensurável
para o mundo ocidental. Nenhuma pergunta é feita. É verdade que, para entrar na tumba de Jesus, o padre ortodoxo que organiza a fila pede, às vezes
de maneira pouco cortês, que as mulheres com camisetas sem mangas cubram os ombros. Mas é só.
O choque se deu quando decidi visitar
Al-Aqsa, a terceira mesquita mais sagrada para os muçulmanos, e, em frente a ela, o
Domo da Rocha, aquela cúpula dourada
que faz de Jerusalém uma cidade ainda
mais linda e que guarda a pedra de onde
Maomé, na companhia do anjo Gabriel,
partiu para conhecer o Paraíso. Minha
mulher e Rubens, nosso guia, puderam
entrar na Esplanada das Mesquitas, mas,
desde o início, sabíamos que ambos não
teriam acesso ao interior dos templos,
desde 2000 vedados a não-muçulmanos.
Em Al-Aqsa, os problemas já se fizeram
sentir. O guarda palestino — sim, os lugares santos muçulmanos são controlados por eles —, ao ver o meu nome no
passaporte e saber que eu não falo árabe,
ficou contrariado, fez muitas perguntas,
mas acabou me deixando entrar.
No Domo da Rocha, tudo foi mais violento. Ao ver meu passaporte, e o meu
nome islâmico que me franqueava a entrada, o guarda quis saber se eu era capaz de ler o Alcorão em árabe. Eu não
menti, mas acrescentei que o conhecia
muito bem em muitas traduções. Ele se
irritou. Ao meu lado, estava o guia (notoriamente judeu, dado o credenciamento). Em hebraico, o policial exigiu que eu
recitasse em árabe a Shahadah, o testemunho de fé muçulmano: "Não há outro
deus senão Deus, e Maomé é o seu mensageiro". Eu me recusei. Depois, o policial exigiu que eu recitasse as primeiras
palavras do Alcorão: "Em nome de Deus,
o Clemente, o Misericordioso, louvado
seja Deus, Senhor do Universo, o Clemente, o Misericordioso, Soberano do Dia do Juízo, servimos-Te e invocamos-te
em nosso auxílio, guia-nos pelo caminho
direito, pelo caminho dos que auxiliaste,
não pelo caminho dos que incorreram na
tua cólera, nem pelo dos que se perderam". Eu me recusei. Então, novamente o
policial me encarou e exigiu saber se eu,
lá dentro, rezaria.
Minha perplexidade chegou ao ápice.
Por que eu haveria de revelar coisas tão
íntimas a um policial fardado? Diante de
meu nome, do meu olhar, de minha fala
em inglês e de minhas companhias judaicas, ele decretou: "Sorry, you will not go
inside". (Perdão, você não vai entrar).
Quando um homem feito de carne e
osso como todos nós decide que é o
porteiro de Deus, as coisas vão mal,
muito mal.
No mundo islâmico, apenas Meca e
Medina são vedadas a não-muçulmanos.
Todas as mesquitas são abertas a quem
queira visitá-las (eu e minha mulher já visitamos muitas, em muitos países árabes,
sem problema algum). Até a segunda intifada em 2000, também era assim em AlAqsa e no Domo da Rocha.
Torço para que aquele guarda seja uma
exceção no mundo muçulmano. Mas que
ele ouse agir assim, e daquela maneira, é
um sinal dos tempos que eu espero seja
superado. Aquele guarda e os que pensam como ele necessitam saber que Deus
não precisa de protetores. Nós, sim.