"Presunção de culpa", O Globo, 14/06/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Presunção de culpa", O Globo, 14/06/2005

Em junho do ano passado, o governador do estado americano de Connecticut, John G. Rowland, foi obrigado a renunciar em meio a um escândalo de corrupção. Nada de verbas bilionárias, porém. Ele foi acusado de receber de fornecedores do estado US$ 107 mil na forma de viagens a Las Vegas e Flórida e obras em uma de suas propriedades. A renúncia não foi a sua maior punição. Em abril passado, ele começou a cumprir pena de um ano e um dia de prisão numa penitenciária federal. Também em abril, Keith McDonald foi parar na cadeia. Ele era presidente da Companhia Pública de Água de Carson, que abastece 17 grandes regiões da Califórnia. McDonald foi condenado por ter aceitado US$ 30 mil em propina para liberar a concessão de uma rede de abastecimento. O júri também o condenou por ter pago US$ 15 mil de suborno a três vereadores para que apoiassem um projeto na Câmara. Trata-se de uma propina de US$ 5 mil para cada vereador, uma ninharia perto das cifras que se mencionam em nossos escândalos de corrupção.

E, no entanto, nos EUA a corrupção no governo não é tão freqüente como aqui. O mesmo acontece no Reino Unido, na França e em países desenvolvidos. Para citar um exemplo, no Reino Unido tem-se notícia de apenas dois casos de repercussão nacional, nos últimos dez anos. O primeiro ocorreu em 1993, quando John Aitken era o ministro encarregado dos contratos de compra e venda de armamentos no governo conservador de John Major. Em setembro daquele ano, ele se reuniu secretamente em missão oficial com príncipes sauditas no Ritz de Paris. Dois anos depois, quando já era secretário do Tesouro, o jornal "The Guardian" publicou reportagem denunciando que as diárias do hotel tinham sido pagas pelos sauditas. Aitken negou a acusação em grande estilo: "Se tiver de ser eu aquele que começará uma luta em nosso país para cortar o câncer do mau jornalismo com a espada simples da verdade, que assim seja." Apresentou duas falsas testemunhas e acabou condenado a seis meses de prisão por perjúrio.

O outro caso é relativo a Peter Mandelson, acusado de irregularidades no governo Blair: perdeu o cargo, foi inocentado, voltou ao governo, foi acusado de nova irregularidade e renunciou novamente. Inocentado, hoje é ministro da União Européia. Na França, o ministro das Finanças, Hervé Gaymard, perdeu o cargo há três meses porque se descobriu que o estado pagava a ele um apartamento de luxo, mesmo ele sendo dono de um imóvel confortável. No Brasil, ministros continuam no cargo mesmo respondendo a processos aceitos pelo Supremo Tribunal Federal. Em nome da presunção de inocência.

No Reino Unido, a legislação anticorrupção data de 1889, quando foi editada a primeira de três leis sobre o assunto. A última delas, de 1916, criou a figura da presunção de corrupção. Ou seja, se ficar provado que alguém que lidou com um agente público tiver dado um presente, uma quantia em dinheiro ou qualquer agrado a este agente, o presente, o dinheiro ou o agrado devem ser tomados, a priori, como instrumento de corrupção a menos que o acusado prove o contrário. No Brasil, é diferente: cabe à polícia provar que o presente, o agrado ou o dinheiro foram instrumentos de corrupção. É a presunção de inocência. Há cinco anos o governo britânico discute uma reforma das leis anticorrupção, e a presunção de culpa é um dos pontos que se quer extinguir. Mas, até aqui, isso não foi feito, o que explica os poucos casos: contando os pequenos delitos, como corrupção policial, os registros anuais não passam de 60. Na maioria, punidos.

Talvez aí resida a diferença entre nós e os países desenvolvidos. Aqui, os casos vêm à tona, a imprensa denuncia, a polícia investiga, mas os culpados não são punidos. Qualquer inglês ficaria espantado de constatar que os protagonistas dos nossos maiores escândalos nos últimos vinte anos jamais cumpriram pena. PC Farias chegou a ser preso, mas acabou morrendo antes do julgamento, em liberdade, ao lado da namorada, num crime jamais esclarecido. Collor sequer foi a julgamento. Com a CPI do Orçamento, a mesma coisa: nenhum dos anões foi parar na cadeia. Em todos os casos de repercussão nacional foi assim, um a um: os envolvidos, quando detêm mandato público, ou são cassados ou renunciam, mas jamais vão para a prisão. É como se a maior pena fosse a extinção da fonte de renda ilegal.

As exceções que confirmam a regra são poucas. Cito o juiz Lalau e Jorgina de Freitas, condenados e ainda presos. O juiz Nestor do Nascimento cumpriu parte da pena e, agora, desfruta da vida na Alemanha. Os responsáveis pelo propinoduto, depois de alguns meses na prisão, estão em liberdade. Foram condenados num trabalho altamente elogiável do juiz Lafredo Lisboa, mas estão gozando do direito de aguardar livres os recursos contra o julgamento. Lembro-me também de dois políticos que foram presos, temporariamente, mas até hoje não foram julgados: Jader Barbalho e Luiz Estevão. O problema está em nossas leis. Não advogo a presunção de culpa, como no Reino Unido. Nos EUA, a presunção é de inocência também, mas, como provam os casos que abrem este artigo, lá os corruptos são punidos.

O governo Lula comemorou as 926 prisões realizadas nos últimos dois anos pela Polícia Federal no combate à corrupção. Mas se esqueceu de dizer que usou sempre o expediente da "prisão temporária", em que o sujeito é preso para coleta de provas por cinco dias, improrrogáveis, e depois é libertado. A mesma PF, que contabiliza com tanta precisão esse tipo de prisão, não sabe quantas delas se converteram em prisões mais longas ou mesmo definitivas. Meu palpite é que o número é próximo de zero.

A corrupção tem muitas causas: o tamanho do estado, o nosso sistema eleitoral, o baixo nível de nossos políticos, a cultura do levar vantagem. Mas a impunidade tem exercido o papel decisivo. Afinal, tudo na vida é ditado pela relação custo/benefício.