Li que as obras de "urbanização" do Pavão-Pavãozinho vão
custar R$ 37 milhões. E que a
"revolução" na Rocinha sairá
por R$ 80 milhões. Comparei com os
custos das obras do Engenhão: R$ 380
milhões. E ando me perguntando: nós,
como sociedade, sabemos escolher as
nossas prioridades? Às vezes eu tenho
a impressão de que nos comportamos
como aquele sujeito hiperativo (refirome ao termo clínico): movimenta-se
para todos os lados, inicia mil projetos, tenta abraçar o mundo com as
mãos, mas, sem medicação, acaba
sempre fracassando em tudo.
Supondo que a reforma do PavãoPavãozinho vá resolver o problema
daquela favela, o dinheiro gasto no
Engenhão daria para melhorar a vida
de mais 10 comunidades semelhantes (ou de mais cinco do porte da Rocinha). Faz sentido?
O trágico é que eu duvido que os
projetos para as duas favelas estejam
voltados realmente para torná-las habitáveis. É por isso que coloquei entre aspas as palavras urbanização e revolução no início deste artigo. Porque não
se trata nem de uma coisa nem de outra. Vi a foto do projeto do Pavão-Pavãozinho no GLOBO e — desculpemme os autores — é o mesmo truque de
sempre. À esquerda, o retrato de barracos de alvenaria, caindo aos pedaços,
um em cima do outro, num ambiente
hostil; à direita, os mesmos barracos,
consertados, pintados, parecendo casas dignas. Já vi projetos assim muitas
vezes, e eles nunca se realizam.
Darcy Ribeiro, um intelectual brilhante, a quem sempre respeitei, mas
que era um sonhador, dizia, em 1982,
que os nossos morros acabariam
causando inveja à classe média, porque iriam se parecer com as encostas
de Nápoles ou com aquelas ilhas gregas com casas todas branquinhas e
bem cuidadas. Prometeu dar a posse
da terra aos favelados, prometeu urbanizar todos os morros, mas a única
coisa que o Governo Brizola fez foi
revogar um decreto que proibia
construções de alvenaria. O objetivo
do decreto era impedir que o temporário se tornasse perene: até então,
os favelados, quando conseguiam
juntar uma poupança, compravam
um terreno legalizado e saíam daquela vida; depois de Brizola, passaram a
investir tudo em seus barracos, porque viver protegido por tijolo é sempre melhor do que viver em barracos
de madeira. Os favelados fizeram
muito bem, mas a ação de Brizola era
apenas um sinal: o Estado lavava as
mãos. Ele não construiu um único
conjunto habitacional, deixando que
os próprios favelados se virassem
como podiam. Essa é a tradução perfeita da famosa frase, perversa, mas
que a muitos parece "humana": "Favela não é problema, mas solução".
A coisa sempre seguiu nesse ritmo.
Cesar Maia lançou como grande projeto o favela-bairro, prometendo, como o nome diz, incorporar as comunidades à cidade, mas, após 15 anos de
implementação, as coisas continuam
na mesma, demonstrando que o projeto fracassou. Da mesma forma, temo
que os atuais também fracassem.
Precisamos encarar de frente o
problema: favelas em morros não são
urbanizáveis. O Estado precisa desenvolver políticas conseqüentes
que dêem à população de baixa renda acesso a habitações decentes, via
financiamento subsidiado, em áreas
com escolas, hospitais e demais serviços públicos, ligadas ao centro por
transporte público de massa veloz,
confortável e barato. Que uma cidade como a nossa aceite conviver com
favelas diz muito de nossa visão de
mundo. E nós deveríamos nos envergonhar dela. É inadmissível que aceitemos como um dado da vida que pobres morem em condições subumanas. Qualquer sociedade, quando
chega em certo nível de civilização,
une todos os esforços para que concidadãos morem dignamente. Aqui,
por culpa da esquerda, criou-se o
pensamento torto de que o pecado é
remover favelas e que a boa ação é
deixá-las onde estão. E, o pior, como
estão. Eu já disse em outro artigo:
ninguém quer se livrar das favelas,
mas livrar delas os favelados.
Para isso, não devemos nos mirar
em exemplos como os da Colômbia.
Temos de ser mais ambiciosos. A
idéia de teleféricos para que moradores de partes altas tenham acesso
às baixas (e a transporte) é a consagração de um erro: as partes altas
não podem e não devem ser habitadas — é o que a lei diz. Se há ricos
morando em encostas de luxo, que
sejam tirados de lá também. Todas
as cidades do mundo têm as suas periferias, ligadas ao centro por sistemas de transporte que encurtam as
distâncias. Os moradores desses lugares têm uma vida modesta, mas
digna, com serviços públicos à disposição. Por que no Brasil haveria
de ser diferente?
Simplesmente, porque não sabemos (ou não queremos) eleger prioridades. Sei que o Pan é importante
para a cidade, sei que trará benefícios secundários permanentes
muito benéficos para o Rio, mas
não creio que, tendo um milhão
de favelados ao nosso redor, essa
seja uma prioridade. Parece-me
demasiado gastar R$ 3,2 bi com o
evento (o gasto foi de R$ 3,7 bi,
mas R$ 500 milhões foram para a
segurança, um investimento necessário com ou sem Pan). Pelos
números do Pavão-Pavãozinho, é
um dinheiro que, investido em
habitação popular e transporte,
daria para tirar da indignidade
muitas comunidades similares.
Agora com o dinheiro do PAC
anunciado para as favelas do Rio,
seriam mais R$ 2,1 bilhões. Se a
cada quatro anos a nossa sociedade tivesse mais foco e conseguisse juntar ao menos um PAC e
um PAN, em pouco tempo nossa
vergonha diminuiria.
Há outras prioridades, claro.
Eu elegeria mais três: educação
(sem o que ninguém sai da pobreza), reforma da previdência
(no Brasil, 50% de todo o dinheiro pago em aposentadorias vão
para pessoas que estão entre os
10% mais ricos da população) e a
reforma trabalhista (reavaliando
direitos, para que 60% de trabalhadores, que hoje não têm direito algum, sejam incorporados à
formalidade).
Se nos concentrássemos nestas quatro tarefas, deixaríamos a
hiperatividade para trás.