Pela quantidade de e-mails,
quase todos de protesto contra meu último artigo, pude
ter uma idéia de como é mesmo difícil reformar a Previdência. Na
raiz de tudo, uma confusão. O termo
"contribuição", para mim, não tem nada de dúbio: é algo que eu faço para
que alguma coisa maior se realize ou
se resolva. Diz-se, por exemplo, que
um grande escritor "contribuiu" muito para o brilho da literatura brasileira. Nos dicionários, além deste, há significados muito precisos: "Parte pertencente a cada um nas despesas do
Estado ou em uma despesa comum."
No entanto, quando se fala em aposentadoria, "contribuição" vira sinônimo de poupança. "Eu contribuí a vida
toda, agora quero o que é meu."
Mas não é isso. Nosso sistema, como o de grande parte dos países, baseia-se na solidariedade entre os que
estão trabalhando e os que já se aposentaram. O que eu pago hoje não fica
depositado em meu nome, rendendo
juros e correção, para que, no futuro,
eu desfrute do que poupei. Não, tudo
o que recolho ao INSS se destina ao
pagamento daqueles que já se aposentaram (ou daqueles que necessitam de ajuda temporária, como o auxílio-doença). Quando chegar a minha
vez, os que então estiverem na ativa,
trabalhando, pagarão por mim. Zelar
para que haja um equilíbrio nesse sistema é interesse de todos, portanto.
Para que a discussão flua melhor,
vou detalhar aqui o que houve com as
aposentadorias do INSS e, no próximo
artigo, com as do setor público. Em
1998, na reforma da Previdência, o governo não conseguiu estabelecer uma
idade mínima para o setor privado: então ministro do planejamento, o deputado Antônio Kandir voltou à Câmara
apenas para aprovar a emenda e, na
hora de votar, errou, e a idade mínima
foi rejeitada por apenas um voto. A
quem já tina 30 anos de contribuição
(homens) e 25 (mulheres) foi resguardado o direito de requerer aposentadoria proporcional. Os que ainda não
tinham alcançado essa condição mantiveram também o direito de se aposentar mais cedo, mas passaram a ter
de trabalhar mais 40% sobre o tempo
que, em dezembro de 98, ainda faltava
para que pudessem requerer o benefício: se, em 98, um cidadão tivesse 20
anos de contribuição, pelas regras antigas ele poderia requerer aposentadoria proporcional se contribuísse por
mais dez anos, em 2008; depois da
emenda, passou a ser obrigado a pagar um pedágio de 40%, só podendo
agora se aposentar em 2012.
Para mitigar o problema da falta de
idade mínima, em 1999, o governo
conseguiu aprovar o chamado fator
previdenciário: quanto mais jovem
for o beneficiário e maior a expectativa de vida do brasileiro, menor será
o benefício. Mesmo assim, a idade
média no momento da aposentadoria
se mexeu pouco: em 99, era de 54, para homens, e 50, para mulheres; agora, é de 57 e 52, respectivamente.
A aposentadoria por idade é também
algo de surreal. Qualquer um pode se
aposentar nessa idade, desde que tenha contribuído por 12,5 anos (em
2011, o tempo mínimo será de 15 anos).
Presume-se que alguém que, aos 65, tenha contribuído por tão pouco tempo
seja de baixa renda, tendo vivido na informalidade a maior parte da vida.
Ocorre que a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) estabelece que todos
aos 65, com renda per capita inferior a
um quarto de salário mínimo, têm direito a um benefício de um salário mínimo (e a quem não tem comprovante
de renda, basta uma autodeclaração,
segundo a lei 2.720). O resultado é que
grande parte dos beneficiários tem renda muito superior à exigida. As duas
leis acabam sendo incongruentes. Uma
estimula o vínculo com o INSS, impondo um tempo mínimo de contribuição;
a outra abre a porteira, sem controles.
Quem é que vai querer contribuir por
15 anos para ter uma aposentadoria
com valor próximo ao do mínimo, se
sabe que aos 65 anos terá um benefício
parecido mesmo sem contribuir?
E há ainda um enorme problema: a
aposentadoria rural. Existem dois grupos: os trabalhadores rurais, com carteira assinada e os que trabalham a
própria roça, não importando se são
proprietários, posseiros, meeiros, arrendatários. Segundo a PNAD, existem
3,5 milhões de trabalhadores rurais
com carteira assinada, mas apenas 31%
deles contribuem. Os trabalhadores
com pequeno roçado devem contribuir
com 2,1% do valor da produção negociada, mas a obrigação de recolher ao
INSS é de quem compra, se o comprador for uma empresa. Um cálculo grosseiro estima que a sonegação no campo gira em torno de 50%. Como na prá-
tica é impossível saber quem contribuiu ou não, trabalhadores rurais acabam se aposentando por idade, aos 60
anos (homens) e 55 (mulheres), desde
que provem que viveram da terra por
12,5 anos (serão 15 anos a partir de
2011). Hoje, há 7,6 milhões de trabalhadores rurais na ativa e 7,15 milhões deles aposentados. Todas as contribuições recolhidas no campo são suficientes para fazer frente a apenas 13% das
despesas com aposentadorias rurais.
Por tudo isso, o equilíbrio não existe.
O déficit do INSS é de R$ 37,8 milhões.Todas as medidas adotadas se
mostraram pouco eficazes: em 99, dizia-se que o déficit do INSS, então em
1% do PIB, ia se manter estável: hoje, já
está em 2% e crescendo. As despesas
com o INSS eram de 2,5% do PIB em 88
e não pararam de crescer: hoje chegam
a 7,4%. A rigor, faltaria já dinheiro para
pagar aos aposentados, mas isso não
acontece, porque o governo absorve o
déficit, tirando dinheiro de outros setores. Praticamente 60% de todas as despesas não financeiras do governo se
destinam a fazer frente à Previdência.
Sobram apenas 8% para investir em tudo o mais (educação, reforma agrária,
segurança etc.) e 2,9% para infra-estrutura, as obras sem as quais nosso crescimento econômico continuará pífio.
A eleição é o momento para se discutir a saída. Mas quem tem coragem?