"O próximo alvo", O Globo, 04/04/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O próximo alvo", O Globo, 04/04/2003

Estudos da Organização Mundial de Saúde sobre suicídio mostram que, considerando-se os países segundo as religiões neles majoritárias, as menores taxas se encontram em nações de maioria muçulmana. É um dado eloqüente. No Alcorão, como em outras religiões, a condenação ao suicídio é de fato explícita: "Ó fiéis, não cometais suicídio, porque Deus é Misericordioso para convosco. Aquele que tal fizer, perversamente e de forma iníqua, introduzi-lo-emos no fogo infernal, porque isso é fácil a Deus" (quarta surata, versículos 29 e 30).

Contraditoriamente, porém, de 1983 a 2000, foram 275 atentados suicidas, cometidos por 15 organizações islâmicas em 12 países. Os alvos eram americanos, europeus e, principalmente, israelenses. Como isso pode acontecer? É uma questão de semântica. Como em todas as religiões, também no islamismo aquele que morre em defesa de sua fé é considerado um santo, tem lugar na eternidade, como os primeiros mártires cristãos, por exemplo.

É a isso que o Alcorão se refere: "E não creiais que aqueles que sucumbiram pela causa de Deus estejam mortos; ao contrário, vivem, agraciados, ao lado do seu Senhor. Estão jubilosos por tudo quanto Deus lhes concedeu da Sua graça" (surata terceira, versículos 169 e 170). O que os terroristas fazem é isso: em vez de chamar o suicida pelo que são, chamam-no de mártir e dizem que ele morreu em defesa da religião, o que não é fato. Pronto, o Paraíso está garantido, a face de Deus será vista e haverá 72 virgens a servir o mártir.

Foram os xiitas que reintroduziram a prática do ataque suicida, adormecida desde o século XIII, com o fim da seita dos Hashshashin (no século XVIII, houve surtos em Sumatra e Filipinas). O primeiro ataque contemporâneo aconteceu em 1983, no Líbano, quando o xiita Hezbollah atacou a Embaixada dos EUA. Na época, o líder xiita do Líbano, xeque Muhammad Husein Fadlallah, manifestou reservas contra essa prática, o que levou o grupo a tentar, com êxito, respaldo no Irã. Após a vitória sobre Israel, o Hezbollah diminuiu o nú- mero de atentados, mas, em 1993, os sunitas ultra-radicais Hamas e Jihad Islâmica começaram os ataques a Israel. A alQaeda foi o último grupo a entrar na arena, em 1998, contra os EUA. A legitimá-los, os sauditas. Em 1989, o xeque Abd alAziz Bin Baz, já falecido, mas então a mais alta autoridade islâmica da Arábia Saudita, classificou como uma guerra santa a luta dos palestinos contra Israel, o que abria caminho para que os suicidas fossem considerados mártires combatentes. E, em meados dos anos 90, o xeque Muhammad Bin 'Uthaimin, outra alta autoridade islâmica saudita, abençoou os ataques suicidas do Hamas. A comunhão de idéias entre esses grupos, xiitas e sunitas, mostra como os interesses políticos tornam os homens mais pragmáticos: Bin Laden é um ultra-ortodoxo (wahhabista), desses que, se apertam a mão de um xiita antes das orações, sentem-se obrigados a fazer as abluções rituais novamente. Se o assunto é homem-bomba, porém, eles se entendem.

O perfil dos homens-bomba joga luz sobre as causas do fenô- meno: são jovens, têm entre 18 e 27 anos, solteiros, desempregados, de famílias pobres, com o secundário completo e freqüentam escolas religiosas financiadas pelo Hamas, que tem uma rede de centros educacionais e de caridade. Tornar-se um homem-bomba dá prestígio e dinheiro à família do morto (Saddam costumava anunciar prêmios de US$ 25 mil dólares).

O mundo pode contribuir para o fim do fenômeno apoiando, verdadeiramente, a criação de um Estado palestino — essa luta é a origem de todo o ódio. E, como os muçulmanos radicais são religiosos mas não fazem milagres (não multiplicam o dinheiro), o remédio a ser aplicado pelas nações árabes deveria ser o clássico: cortar as fontes de financiamento, reprimir as lideranças, e, fundamentalmente, implementar políticas que tirem os árabes da miséria e levem democracia a eles. Nada disso é contra a alma do muçulmano, pois um terço do Alcorão é dedicado a louvar as virtudes da razão e do conhecimento. Mas os ditadores da região acreditam que podem passar despercebidos de seus próprios povos se alimentarem o ódio a Israel e apoiarem os homens-bomba. É uma ilusão: eles serão o próximo alvo.