Eu me lembro bem de quando
fui apresentado a uma biblioteca. Estava com onze anos e
tinha acabado de chegar a
uma nova escola. A bibliotecária se
chamava Graça, era jovem, gostava
do que fazia e, melhor, gostava da minha curiosidade. Dizendo assim parece piada, mas eu me encantei pelos
segredos da catalogação: aquelas fichas eram o caminho seguro para um
mundo de assuntos, qualquer um:
bomba atômica, poluição, árabes (um
tema caro a um jovem que vinha de
uma família de imigrantes) e, claro,
biologia (aparelho reprodutor, sexo,
temas caríssimos a todo pré-adolescente). Havia também, naturalmente,
a possibilidade de consultar a partir
dos autores, e eles eram uma multidão, nomes que eu nunca tinha visto
antes. Graça ficava atrás do balcão,
terreno proibido para os estudantes
pela Irmã Emerenciana, responsável
pela biblioteca. Depois de muita insistência, porém, Graça me permitiu ver
como os livros ficavam dispostos, todos rotulados de acordo com o número que constava das fichas: estantes e
mais estantes de livros, o equivalente
mais modesto, mas, mesmo assim,
muito poderoso, do Google de hoje
em dia (sem o lixo). No início, o que
me interessou mesmo foi a coleção de
"As aventuras de Tintim", que eu li toda, mas, com o tempo, comecei a recorrer à biblioteca sempre que um assunto martelava na minha cabeça. Na
minha formação, aqueles livros foram
fundamentais.
Da mesma forma, o laboratório de
ciências da escola provocou em mim
uma impressão que eu nunca vou esquecer. Eram bancadas retangulares
de ladrilhos brancos, bem altas, dispostas em duplas, cada uma com uma pia. Nós nos sentávamos em bancos
altos, o que nos fazia sentir importantes. Um dia, na aula de ciências, depois de apresentados ao aparelho
nervoso, fomos conhecer no laboratório um cérebro conservado em formol. O cheiro forte nos fez chorar,
mas vestir luvas descartáveis e sentir
nas mãos as estruturas do cérebro
com seus sulcos e fendas nos fazia ter
precocemente os sentimentos que os
alunos de medicina têm nas aulas de
anatomia. Não sei quantos de nós se
tornaram médicos; sei que aquelas
aulas me fizeram ter a certeza de que
"Humanas" era a minha área. No mesmo prédio do laboratório, havia uma
sala que apelidávamos de museu,
com animais empalhados, insetos catalogados e algo a que apenas os mais
velhos do científico tinham acesso: fetos humanos em diferentes estágios
conservados em formol. No mesmo
andar, uma sala de projeção, um cineminha com cadeiras em patamares diferentes, sempre mais altos, para que
ninguém atrapalhasse a visão.
E, no entanto, o Santa Rosa de Lima
era (e ainda é) apenas um colégio simples de bairro, voltado para a classe
média de Botafogo, Flamengo e adjacências. Nunca foi um colégio de elite,
caro, nunca constou da lista dos mais
badalados, mas tinha um projeto a
que as irmãs dominicanas se dedicavam (e se dedicam) com zelo. Tampouco era o único com esse perfil; havia (e ainda há) muitos. O problema é
que o esmagamento da classe média
é de tal ordem que uma família com
os recursos proporcionais aos que a
minha tinha na época dificilmente pode matricular hoje quatro filhos em
colégios com qualidade.
Todas essas reminiscências me
vieram à mente depois de uma visita
à página do Instituto Nacional de
Educação Pública Anísio Teixeira (Inep), ligado ao MEC. A boa notícia é
que, diferentemente do que acontecia na minha época, hoje 100% das
crianças estão na escola. Mas as estatísticas sobre educação me fizeram
ter a certeza de que estamos a anosluz do que realmente precisamos para educar o nosso povo. Segundo dados de 2003 (os mais recentes), de todas as escolas públicas de ensino
fundamental, apenas 23% têm bibliotecas, só 5% dispõem de laboratórios
de ciências, 13% contam com salas
de vídeo, 27% têm computadores, 9%
possuem laboratórios de informática
e somente 10% têm acesso à internet.
Entre os professores que trabalham
para a rede pública, apenas 55% têm
curso superior.
É uma situação desoladora, que
não levará a maior parte dos alunos a
superar os entraves da pobreza e
manterá o Brasil na eterna posição de
país pobre e desigual.
O que poucos percebem é que
também a escola privada não é um
oásis no meio de um sistema de ensino degradado. Oferecem mais recursos, mas, pelas estatísticas, há
muitos pais que se esforçam para
pagar por um ensino privado que
nem de longe lhes dá o que devia:
24% das escolas privadas de ensino
fundamental não têm biblioteca,
69% não têm laboratório de ciências,
45% não têm salas de vídeo, 47% não
dispõem de laboratório de informá-
tica, 18% não contam com computadores e 48% estão desconectadas da
internet. Basta também que os pais
se interessem por saber qual o salá-
rio dos professores de seus filhos
para que cheguem à conclusão de
que o dinheiro não é suficiente para
que eles sustentem a família e ao
mesmo tempo possam comprar livros e fazer os cursos necessários
para o seu contínuo aperfeiçoamento. Isso vale para todas as escolas,
mesmo as de elite.
Ninguém está a salvo.
Enquanto isso, o governo prefere
continuar gastando bilhões em polí-
ticas assistencialistas sem foco, como tenho tentado mostrar aqui. Em
qualquer município é possível, numa
rápida pesquisa, encontrar comerciantes, funcionários públicos e parentes de vereadores recebendo o
Bolsa Família. A imprensa tem mostrado isso, e, toda vez, o governo diz
que são casos isolados, mas não são.
O Ministério do Desenvolvimento Social tenta limpar o Cadastro Único, de
onde devem sair os beneficiários de
programas sociais, mas o trabalho
anda lentamente, muito lentamente.
Com a eleição, corre o risco de não
produzir conseqüências.
Apenas para dois programas —
Bolsa Família e os Benefícios de Prestação Continuada, ambos, a meu ver,
com problemas de foco e público-alvo
superestimado — o governo prevê
gastar R$ 19,3 bi em 2006. Enquanto
isso, o orçamento previsto para investimentos em educação é de R$ 8,5 bi.
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico (Fundeb),
ainda não aprovado pelo Congresso,
prevê que a União participará dele
com recursos de R$ 2 bi no primeiro
ano; ao fim de quatro anos, a participação será de R$ 4,5 bi ao ano. Uma
quantia ainda assim pequena para
modificar o quadro que tracei aqui.
Esse é o beco em que nos metemos: remediar a pobreza com recursos que são altos pelo desperdício e
falta de foco em vez de vencê-la com
investimentos realmente maciços em
educação.
Quando os políticos entenderão
que a educação é a chave de tudo?