"O que pensam os fanáticos do Islã", O Globo, 26/03/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O que pensam os fanáticos do Islã", O Globo, 26/03/2003

Poucos conhecem o termo "wahhabismo", mas ele é fundamental para se entender o extremismo religioso, base do terrorismo islâmico. O movimento surgiu na Arábia do século XVIII, pelas mãos de Muhammad ibn Abd al-Wahhab. Vindo de uma família de religiosos e professores, al-Wahhabi, desencantado com o que chamava de degradação do islamismo, propôs um retorno radical às origens, contra todas as inovações. Tudo o que ele pregou partiu da ênfase na base monoteísta da religião islâmica: adorar apenas o Deus único.

A partir dessa idéia central, propôs uma leitura literal (e para grande parte dos muçulmanos, equivocada) do Alcorão. Recriminou o que chamou de excessiva veneração ao Profeta Maomé, proibiu cultuar homens santos ou apelar para a intermediação deles junto a Deus em orações, baniu a música, a dança, o álcool e o fumo, impôs uma condição de segunda classe às mulheres, tornou obrigatória a participação dos homens nas orações nas mesquitas, proibiu a comemoração de datas festivas (mesmo o aniversário de Maomé) e insistiu na validade das punições físicas: adúlteros têm que ser apedrejados, ladrões devem ter o braço amputado, e a pena de morte deve ser executada em lugares públicos. E o mais importante: determinou que a lealdade deve ser total ao soberano que tiver o Alcorão como lei. Pregou a volta ao tempo do Profeta, com a recriação do Califadoeareunião de todos os muçulmanos sob uma mesma liderança.

Um movimento religioso que caiu como uma luva à Casa de Saud, que guerreava então contra outras tribos para tentar unificar a Arábia. Unidos, Wahhabi e Saud obtiveram êxitos e fracassos, mas foi somente no início do século XX que um descendente seu, Ibn Saud, revivendo o wahhabismo do século XVIII, conseguiu vencer seus adversários e fundar a Arábia Saudita. Desde o início, o wahhabismo foi a religião de estado, com grande ênfase na necessidade de manter no poder um rei disposto a seguir a lei de Deus. É uma seita tão sectária que sequer se admite como seita: chamar seus seguidores de wahhabistas é, para eles, uma grande ofensa; eles se consideram apenas o verdadeiro Islã (todos os outros muçulmanos, sejam sunitas ou xiitas, são considerados inferiores). A casa real saudita financiou todos os movimentos nos países vizinhos que pensassem de maneira igual, sem imaginar o monstro terrorista que estava criando. Foi dinheiro saudita que financiou a abertura de escolas (madrassas) wahhabistas em todo o mundo islâmico. E mesmo fora: 80% das mesquitas nos Estados Unidos foram construídas com dinheiro saudita. O wahhabismo deu crias em todos os países árabes.

Foi a armadilha em que caíram os sauditas. Radicalizar o discurso religioso era uma necessidade para justificar o poder, mas foi a radicalização desse discurso que deu origem a um movimento ainda mais radical: o neowahhabismo de Osama bin Laden e dos outros movimentos terroristas. Em 1928, bebendo na mesma fonte, foi criada no Egito a Irmandade Muçulmana (em 54, perseguidos por Nasser, muitos foram para a Arábia Saudita, onde encontraram abrigo); o grupo terrorista palestino Hamas nasceu da Irmandade Mu- çulmana; e o Talibã, que acabaria tomando o poder no Afeganistão, foi financiado no início pela Arábia Saudita. Todos com um ideal pan-islâmico, com a missão de destruir todos os que a eles se opõem para que seja criado um estado islâmico universal. E perfeito, deliram.

Em 1979, a hipocrisia da casa real saudita, que pregava uma coisa, mas na prá- tica levava uma vida de ostentação e luxo, fez um grupo de neowahhabistas tomar a mesquita de Meca, de onde só saí- ram mortos (por comandos franceses, diga-se). A Casa Real, em vez de liberalizar os costumes, tornou-os ainda mais rígidos: as mulheres, que antes podiam viajar ao exterior apresentando um documento do pai ou do marido, passaram a só poder sair do país na companhia de um homem da família; mulher ao volante passou a ser uma proibição formal.

Entre liberalizar os costumes, e cair, e radicalizar a rigidez da moral e dar origem a osamas, os sauditas têm preferido a segunda opção, porque acreditam, erradamente, que osamas podem ser expulsos do país e terroristas, caçados (e, de fato, o governo saudita tem tentado reprimi-los internamente) . Quinze dos 19 seqüestradores dos aviões que se chocaram contra o Pentágono e as Torres Gêmeas eram sauditas.

Esses fanáticos neowahhabistas são o totalitarismo do século XXI. Acreditam-se superiores a todos os que não pensam como eles, têm um projeto expansionista bem definido (unir o que acham ser os verdadeiros muçulmanos num estado teocrático como no tempo do Profeta) e estão dispostos a morrer para vencer essa luta. Já mostraram do que são capazes quando têm um estado por trás, como no caso do Afeganistão. Impedir que o Iraque fosse o estado-substituto é o projeto dos Estados Unidos. Eles esperavam que o mundo visse nesses fanáticos o mesmo perigo. O mundo não viu.

Amanhã, pretendo mostrar como Bush, ao contrário do que muitos supõem, foi o presidente americano que mais ouviu a ONU. Para ignorá-la ao final.