Não faz muito tempo, um comentarista de TV a cabo
disse, confiante, que certas doenças e certas qualidades são geneticamente determinadas pela raça. Ouvi também um jornalista de rádio dizer, em relação ao
caso do jogador Grafite, que nada se
pode fazer quando se quer mencionar o nome de uma raça: "O nome da
raça é negra", ele disse. E, claro, impossível esquecer o então candidato
Lula, afirmando, num debate, que
certamente haveria uma maneira
científica de determinar se alguém é
da raça negra. O curioso é que as
três manifestações se deram num
contexto de repúdio ao racismo. O
que eles desconhecem é que acreditar que raças existem é a base de todo racismo. Raças não existem.
Nos últimos 30 anos, este é o consenso entre os geneticistas: os homens são todos iguais ou, como diz
o geneticista Sérgio Pena, os homens são igualmente diferentes.
O mesmo não se dá com os animais. Tomemos o exemplo dos
cães. Todos sabemos que há várias
raças da espécie canina. Elas são
bem diferentes entre si, tanto na
aparência quanto no comportamento: há raças maiores e menores, compridas e curtas, inteligentes e obtusas, dóceis e agitadas.
Qualquer um saberá dizer, de longe, qual é o bassê e qual é o dog alemão. Pois bem, o que faz o bassê e
o dog alemão serem de raças diferentes é que bassês se parecem
mais com bassês, do ponto de vista
da genética, do que com dogs alemães. Reúna um grupo de bassês:
haverá animais mais compridos
que outros, mais altos que outros,
com focinhos mais pontudos que
outros. Mas a variabilidade entre
bassês será sempre menor do que
entre bassês e dogs alemães.
Com homens, isso não acontece,
e é isso a nossa beleza, a nossa riqueza, a nossa sorte. Fico totalmente perturbado de comparar homens
e cães, mas é a falta de informação
de muitos que me leva a usar expediente tão constrangedor.
Consideremos dois grupos. O
primeiro com aqueles que o senso
comum diz serem da "raça" negra:
homens de cor preta, nariz achatado e cabelo pixaim. O segundo com
aqueles que o mesmo senso comum diz serem da "raça" branca:
homens de cor branca, nariz afilado e cabelos lisos.
Desde 1972, a partir dos estudos
de Richard Lewontin, geneticista
de Harvard, o que a ciência diz é
que as diferenças entre indivíduos
de um mesmo grupo serão sempre
maiores do que as diferenças entre
os dois grupos, considerados em
seu conjunto. No grupo de negros
haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a
doenças cardíacas, com proteção
genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer etc. No
grupo de brancos, igualmente, haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a
doenças cardíacas, com proteção
genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer etc. A
única coisa que vai variar entre os
dois grupos é a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, isso
porque os dois grupos já foram selecionados a partir dessas
diferenças. Em tudo o
mais, os dois grupos
são iguais. Na comparação odiosa, dois
bassês são geneticamente mais homogê-
neos do que um bassê
e um dog alemão e,
por isso, formam duas
raças distintas. Com
os homens, isso não acontece.
O genoma humano é composto
de 25 mil genes. As diferenças mais
aparentes (cor da pele, textura dos
cabelos, formato do nariz) são determinadas por um conjunto de genes insignificantemente pequeno
que perfazem uma fração insignificantemente pequena se comparado
à de todos os genes humanos. Para
ser exato, as diferenças entre um
branco nórdico e um preto africano
compreendem apenas uma fração
de cerca de 0,005% do genoma humano. Por essa razão, a imensa
maioria dos geneticistas é peremptória: no que diz respeito aos homens, a genética não autoriza falar
em raças. Segundo o geneticista
Craig Venter, o primeiro a descrever
a seqüência do genoma humano,
"raça é um conceito social, não um
conceito científico".
Uma fonte de confusão são estudos freqüentemente divulgados em
que se diz que uma doença é mais
comum entre negros ou entre brancos, ou entre amarelos. Isso nada
tem a ver com raça, mas com grupos populacionais, que se casam
mais freqüentemente entre si. Seria preciso que os genes que determinam a cor da pele também determinassem essa ou aquela doença
para se relacionar "raça" e a doen-
ça, e isso não existe. A ciência já
mostrou que a associação entre ra-
ça e doença não passa de um mito,
como me disse o geneticista Antô-
nio Solé-Cava, da UFRJ.
Por exemplo, o caso da anemia
falciforme entre negros. Sabe-se hoje que quem tem essa doença é também mais resistente à malária. Não à
toa, o gene da anemia falciforme é
mais freqüente em algumas áreas da
África, onde a presença do mosquito transmissor da malária é maior,
fato determinado pela seleção natural. Nas outras regiões da África, o
gene da anemia falciforme é raro. Assim,
não se pode dizer que
todo negro tem uma
maior probabilidade
de ter este o gene: apenas aqueles, mesmo
assim nem todos, com
antepassados vindos
de certas regiões onde
o mosquito transmissor era numeroso.
Além disso, se os
negros oriundos daquelas regiões têm
mais freqüentemente o gene da anemia falciforme (ou de qualquer outra doença), isso não torna o gene
exclusivo desse aquele grupo. Isso
vale para qualquer doença, para
qualquer grupo. Tão logo o indiví-
duo portador de certo gene se case
com outro que não tenha o gene, o
filho dessa união poderá vir a herdá-
lo. No caso de um negro e uma branca: se o filho herdar uma pele mais
clara e se casar com uma branca, o
filho dessa nova união poderá ser
branco e, mesmo assim, herdar o
gene. Definitivamente, não existem
genes exclusivos de uma determinada cor. Numa sociedade segregada
como a americana, talvez seja mais
comum que grupos populacionais
tenham uma carga genética mais parecida. Em lugares em que a miscigenação predomina, como aqui, isso é muito mais improvável.
A cor da pele não determina sequer a ancestralidade. Nada garante
que um indivíduo negro tenha a
maior parte de seus ancestrais vindos da África. Isso é especialmente
verdadeiro no Brasil, devido ao alto
grau de miscigenação. O geneticista
Sérgio Pena já mostrou isso num estudo brilhante. Usando os marcadores moleculares de origem geográfica, ele analisou o patrimônio gené-
tico de cidadãos negros da cidade
mineira de Queixadinha e descobriu
que 27% deles tinham uma ancestralidade predominantemente não-africana, isto é, maior do que 50%. Considerando-se os brancos de todo o
Brasil, descobriu-se que 87% deles
têm ao menos 10% de ancestralidade africana. Nos EUA, esse número
cai para apenas 11%. Ou seja, no
Brasil, há brancos com ancestralidade preponderante africana e negros com ancestralidade preponderante européia. Somos, graças a
Deus, uma mistura total.
A crença em raças, porém, não é
apenas fruto da ignorância. Volta e
meia surge dentro da própria ciência alguém disposto a desafiar o
consenso reinante: o destino de todos eles é o esquecimento, mas,
quando surgem, fazem muito barulho. É o caso do biólogo britânico
Armand Marie Leroi. Em março último, escreveu um explosivo artigo
para o "New York Times", asseverando que raças não somente existem como seu conceito é bem-vindo, já que ajudaria no diagnóstico e
tratamento de certas doenças, mito,
como vimos, já desfeito. Os argumentos de Leroi são na verdade
uma revalidação das antigas cren-
ças dos antropólogos do século
XVIII que criaram a noção de raça.
Em resposta, dezenas de cientistas
escreveram artigos reafirmando as
descobertas da genética. Não disseram, mas eu repito o que sempre digo: o racismo está em todo lugar. Entre cientistas, inclusive.
Raça será sempre uma constru-
ção cultural e ideológica para que
uns dominem outros. Eu continuo
acreditando que o preconceito no
Brasil é em relação à pobreza e não
à cor da pele. Mas indivíduos que se
sentem perseguidos pela cor devem
lutar por seus direitos. Não devem,
no entanto, sucumbir ao argumento
racista de que pertencem a uma ra-
ça. Devem dizer que querem os mesmos direitos porque somos todos
iguais. Ou igualmente diferentes.