Como no artigo passado,
comento aqui mais um
estudo que pretende resolver a dúvida sobre se
é a pobreza ou o racismo o que
faz a maior parte dos negros (os
pretos e os pardos) ter um desempenho na vida e na escola pior do
que a maioria dos brancos: "Relações raciais na escola: reprodução de desigualdade em nome da
igualdade", de Mary Garcia Castro e Miriam Abramovay. As autoras fizeram duas coisas. Pesquisas qualitativas, em Belém, Salvador, Brasília, São Paulo e Porto
Alegre, abrangendo em cada uma
dessas cidades cinco escolas
(duas privadas e duas públicas),
com entrevistas e grupos focais
com alunos, professores e pais de
alunos. E uma análise quantitativa com base nos dados do Saeb
de 2003, uma prova que mediu a
proficiência de 92.198 alunos da
4ª série em matemática e português em 5.598 escolas.
Desprezarei a pesquisa qualitativa, ao menos hoje, por falta de espa-
ço, e por considerar que ela está
contaminada em excesso por uma
visão preconcebida das pesquisadoras. Na análise quantitativa, os resultados indicam que 56% dos alunos
negros (pretos e pardos) se encontram abaixo da média considerada
"crítica", contra 44,7% dos alunos
brancos. Até aí, nenhuma novidade.
Mas as autoras dizem que conseguiram acabar com a eterna dúvida: esse desempenho pior entre os negros se deve à pobreza ou à discriminação racial? Após comparar alunos
que elas acreditam que estejam em
"situação de igualdade socioeconômica" ou na "mesma faixa de renda",
declaram: "Mesmo em situações de
igualdade socioeconômica os alunos
negros atingem uma proficiência mé-
dia inferior àquela obtida pelos alunos brancos". Bingo, o desempenho
pior se deve ao racismo.
Mas não é nada disso. As autoras cometeram um estupendo erro
metodológico.
A Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa desenvolveu uma
metodologia para estimar o poder
de compra das pessoas. Trata-se do
"Critério de Classificação Econômica
Brasil", que divide a população entre
as classes A1, A2, B1, B2, C, D e E. Às
vezes, agregam-se duas classes ou
mesmo quatro. Tal classificação, porém, nada tem a ver com renda.
Como é que se define se um cidadão pertence a uma classe? De
uma pequeníssima lista de bens e
facilidades (televisão em cores, rádio, banheiro, automóvel, aspirador
de pó, máquina de lavar, vídeo ou
DVD, geladeira e freezer), perguntase quantos de cada item o entrevistado possui. Pergunta-se também
se o entrevistado tem empregado
doméstico mensalista (incluindo
motorista) e qual o grau de instrução do chefe de família. Os bens relacionados, o número de empregados e o grau de instrução do chefe
da casa vão somando pontos. Serão
da classe A1 todos os que somarem
de 30 a 34 pontos; da classe A2, de
25 a 29 pontos (e assim por diante, até a classe E, de 0 a 5 pontos).
Não é preciso muito esforço para
se perceber que duas pessoas podem ser da classe A (A1 e A2) mesmo tendo rendas e padrões de vida
muito diferentes. Alguém será da
classe A caso tenha quatro televisores em cores tipo plasma de 52 polegadas, 10 rádios ultramodernos,
cinco banheiros todos com hidromassagem, três Mercedes na garagem, seis empregados domésticos,
quatro aspiradores de pó, três máquinas de lavar de última geração,
quatro DVDs, quatro geladeiras, dois
freezers e more numa casa cujo chefe tenha pós-doutorado. Da mesma
forma, será também da classe A o cidadão que tiver um televisor em cores de 14 polegadas com 10 anos de
uso, quatro radinhos de pilha, dois
banheiros (um na casa e outro numa
portinha, no fundo do quintal), dois
automóveis (um Brasília 77 e um Gol
92), uma empregada, sem carteira
assinada, ganhando menos do que
um salário mínimo, um aspirador de
pó velhinho, um vídeo de 10 anos,
uma geladeira de duas portas enferrujada e que more numa casa cujo
chefe tenha o superior incompleto.
Alguém em sã consciência dirá que
essas duas pessoas estão em situação de igualdade socioeconômica?
As autoras dizem.
O chamado "Critério de Classificação Econômica Brasil" parece grosseiro, e é, mas tem muita utilidade
quando o interesse é ter uma idéia
geral do tipo de público que um produto alcança, por exemplo. Se a idéia
é lançar um produto para a classe
AB, não adianta anunciá-lo num programa de rádio rejeitado por essas
mesmas classes, por exemplo. Mas é
inadequado usar esse tipo de critério para fazer pesquisas que requeiram uma precisão maior, um retrato
mais em foco. As autoras usaram um
binóculo acreditando estar usando
um microscópio.
Pegaram os dados do Saeb, desagregaram por cor e classe econômica pelo Critério Brasil, e disseram
que 23,40% dos negros de classe A
têm pontuação considerada "crítica"
ou "muito crítica" em matemática,
enquanto apenas 10,40% dos brancos de mesma classe se encontram
nessa situação. Em todas as outras
classes, a desvantagem seria também dos negros. Na classe B, 25,80%
contra 31,40%; na classe C, 44,10%,
contra 48,90; na classe D, 61,80%
contra 64%, e na classe E, 78,7% contra 80,6%. Como os negros são 60%
dos pobres no Brasil, em cada uma
dessas classes é muito provável que
eles estejam em pior situação econômica do que os brancos.
E, o pior, as autoras não anunciam, em cada faixa, qual a margem
de erro, que aumenta à medida que
os números são desagregados. Assim, não tenho sequer certeza de
que algumas das diferenças apontadas — por volta de cinco pontos percentuais — sejam mesmo uma diferença. A conferir.
A estatística permite muitas coisas, mas ainda não foi dessa vez
que o racismo pôde ser traduzido
em números.